terça-feira, 17 de março de 2009

ERASMO, O HUMANISMO E A REFORMA:

ERASMO, O HUMANISMO E A REFORMA:
CONSIDERAÇÕES QUANTO A UM REFORMADOR ESQUECIDO[1]


Claudinei Fernandes Paulino da Silva
Kleiton Cerqueira. de Almeida



RESUMO



O presente artigo procura, a partir da pesquisa bibliográfica em torno do pensamento de Erasmo de Roterdam, situar no contexto entre fins do século XV e início do século XVI, onde se insere, portanto, a Reforma Protestante e o Movimento Humanista, o caráter peculiar do pensamento daquele que foi talvez o maior humanista de todos os tempos. Personagem mais influente e prestigiado de sua época, aclamado por alguns como o primeiro grande homem moderno e precursor do Iluminismo, Desidério Erasmo era um intelectual que procurava levar a cabo uma reforma na prática moral da Igreja de traços medievais. Defrontou-se diretamente com os intentos de Lutero, a quem considerava intempestivo e, até certo ponto, tomado por fanatismo. Acabou sendo sobrepujado por este e por aqueles que seguiram à Reforma oficialmente por Lutero iniciada.





1. APONTAMENTOS BIOGRÁFICOS A MODO DE INTRODUÇÃO


Erasmo nasceu em Rotterdam, em 28 de outubro de 1469[2]. Filho bastardo de Roger Geert[3], clérigo com funções itinerantes nas paróquias da cidade de Gouda, próxima a Rotterdam, e Margared ou Marguerite. Recebendo o nome de Erasmo, santo muito popular nos Países Baixos, seguido pelo sobrenome Rogerii, por fim conhecido como Desiderius Erasmus, confirmado na segunda edição dos “Adágios” e que tem por tradução “o desejado amável”, sobre o qual conta-se relacionar a frase sarcástica circulante no século XVI por parte dos simpatizantes da Reforma: “Quaeritur unde tibi sit nomem Erasmus? Eras mus.” (Indaga-se de onde tiraste o nome Erasmo? Eras rato.”)[4].

Iniciado na vida escolar na cidade de Gouda, seguiu para os estabelecimentos dos “Irmãos da Vida em Comum”, em Deventer, e, por fim, para a ordem agostiniana em Steyn, dos estudos os quais derivou sua ordenação em 1492.

Como clérigo, tornou-se secretário do bispo de Cambrai, podendo assim “liberta-se dos horizontes limitados do mosteiro de Steyn e tomar contato com o mundo”[5]. Com efeito, delegado por tal, seguiu para Paris, a fim de obter o grau de doutor em teologia. Ali estudou amplamente o latim e conheceu Robert Gaguin e Faustus Andrelinus, mestres do humanismo florescente.

Posteriormente, a partir de suas aulas particulares e dos contatos pessoais advindos delas, chegou à Inglaterra, encontrando uma atmosfera agradável para seus anseios humanistas e interesses intelectuais. Na Inglaterra conheceu Thomas Morus, autor de “A Utopia” e futuro homenageado do “O Elogio da Loucura”. Ali aprofundou seu conhecimento do grego, que resultou na tradução do Novo Testamento, acompanhada de comentários críticos e publicada em 1516. Trabalhava agora com perícia os dois idiomas fundamentais aos humanistas, o grego e o latim.

Depois de uma estadia como estagiário na Itália, um antigo sonho, comum talvez a todos os humanistas de então, retornou à Inglaterra, período de escrita de “O Elogio da Loucura” em homenagem a seu anfitrião Thomas Morus. Fez uma série de outras viagens, morreu em Basiléia, cidade para onde retornou depois de estar em Friburgo. Era 12 e julho de 1536.


2. O HUMANISMO


A Europa medieval experimentava mudanças que progressivamente acabaram transformando todo um panorama até então construído. Uma nova forma de pensar emergia aos poucos, e o centro deste pensamento era o homem. De acordo com Pierre Chaunu, este desenvolvimento recebeu o nome de “studia humanitatis”, que tem a tendência de dominar toda a atividade do espírito, conhecida também como humanismo. Chaunu ainda destaca que a característica mais importante é que todo o trabalho humanista passou a estar “nas mãos de um pessoal novo” (termo usado por ele) e não mais nas mãos dos doutores da universidade, fazendo menção a Escolástica.[6] A partir do Século XIII, a lógica se tornou o mais importante elemento no exercício do comentário, caracterizada como soberana, a “arts artium”.[7]

Mas estas transformações já são sinalizadas desde a Renascença, portanto um fenômeno italiano. Segundo Daniel Rops “enquanto todo o resto do Ocidente era ainda teatro da agonia da civilização medieval, em Florença, em Siena, em Veneza e em Roma operava-se já um novo nascimento.” [8] A febre pelo conhecimento dos antigos humanistas encorajava cada vez mais a paixão pelas ciências. Rops cita um preceito de Terêncio: “Sou homem, e nada de humano me é estranho”.[9] Não somente o homem é pensado, mas também o conhecimento do mundo, um conhecimento crítico. Leonardo da Vinci procurava surpreender o sentido da matemática do mundo, sonhava em como fazer o homem voar à semelhança dos pássaros e substituir o trabalhador pela máquina, e recebeu autorização para dissecar cadáveres. Maurolycus de Mesina cria a óptica e demonstra que o cristalino do olho é uma lente, além dos primeiros princípios das ciências naturais, estudado por Giambattista della Porta.[10]

Em Florença ecoa a voz profética de Savonarola que é calada pela fogueira, mas que prenuncia outros profetas. Além do florescimento artístico, a Renascença também encontra um ponto de partida no gosto pela literatura antiga.[11] O grego passa a ter um valor muito mais forte que o latim, a ponto de as próprias mulheres, afirma Rops, participarem desta moda erudita. “Cecília de Gonzaga, aos oito anos, conjugava todos os verbos gregos, e Beatriz de Este, aos quinze, notabilizava-se na poesia latina e grega.” [12] Esse conhecimento das letras clássicas seria norma a partir dali a toda cultura humana.

Cícero, falando da herança helênica, chamara-lhe humanitas, Leonardo Bruni aplicou o termo tanto ao acervo de Roma como ao da Grécia. Assim, o qualitativo humanus, que em latim significa ao mesmo tempo “culto”, “polido” e muitas outras coisas, veio a designar o próprio conjunto do movimento que esse regresso às línguas antigas parecia ter desencadeado.[13]

Em 1509, o humanismo teve sérios confrontos com a escolástica. Para Chaunu a universidade escolástica comprometeu-se com a pretensão conciliar ao governo permanente da igreja.[14] O espírito da época já não assimilava mais viver sob a tutela da igreja e um grito de liberdade tornara-se inevitável. Nos Séculos XV e XVI, alguns acontecimentos importantíssimos ocorreram: O comércio mercantil ganhou forças, o feudalismo se enfraquecia cada vez mais, a necessidade da leitura, da escrita e do cálculo, essenciais ao comércio e de outros conhecimentos práticos conduzia as modificações no plano educacional.[15] A imprensa catalisava a difusão da cultura, a pólvora derrubava definitivamente a hegemonia das fortalezas feudais, a evolução do transporte marítimo permitiu o maior contato com outras culturas, uma nova visão de mundo foi construída a partir da teoria heliocêntrica de Copérnico. A burguesia se dividia com o tempo em alta burguesia - banqueiros e baixa burguesia - comerciantes e artesãos e consolidação de estados nacionais.
Diante destes acontecimentos o poder da igreja diminui e sua voz então é confrontada com a voz da liberdade humana. As interpretações passam a ter como referencial a razão e não mais a autoridade eclesiástica. A corrupção do clero vem a ser outro fator determinante que contribui para a busca de uma Reforma, que seria apenas uma questão de tempo.

Augustin Renaudet faz distinção entre humanismo entusiasta e humanismo crítico. O humanismo entusiasta ligava a Antiguidade latina com a ficção medieval, enquanto que o humanismo crítico separava a verdadeira Antiguidade das interpolações tardias.[16] Alguns nomes importantes merecem evidência no humanismo: Lorenzo Valla, que causa grande admiração a Erasmo, outro nome de profunda importância, talvez o grande vulto deste momento. Erasmo de Rotterdam é considerado para muitos historiadores o mentor intelectual da Reforma Protestante. “Erasmo botou o ovo e Lutero chocou.”[17]


3. ERASMO E A REFORMA PROTESTANTE

A Reforma protestante sofre uma grande influência do humanismo. A forma de interpretar as escrituras, onde a razão é utilizada e não a autoridade clerical, por exemplo, além das traduções para a língua do vernáculo. A Reforma se mostra aberta às novas idéias e com o fortalecimento das Nações Estados, do comércio e da imprensa, o protestantismo se torna uma opção não só religiosa, mas para muitos a possibilidade de uma vida livre da tutela de Roma. Diante desta relação entre humanismo e Reforma, merecem destaque dois nomes proeminentes: Erasmo e Lutero.

Erasmo, conforme já mencionado, é considerado o mentor intelectual da Reforma, embora nunca rompesse com a igreja oficial. Lutero, por usa vez, questiona a Igreja, confronta de forma teológica o comportamento institucional, como as indulgências, além de enfatizar a graça, a fé, como elementos centrais de ligação entre o homem e Deus, o que acaba com a necessidade do intermédio da instituição para salvação. Como conseqüência a classe eclesiástica perde o status de “razão de ser”, e com ela a igreja também. Em Lutero há uma ruptura com a igreja oficial.

A vida humana para Erasmo é compreendida como uma cooperação do homem com Deus. Para ele o homem não é mal por natureza, contrapondo aqui a afirmação teológica dos reformadores da natureza corrompida pelo pecado original, uma visão pessimista. Os elementos bíblicos e evangélicos, junto com a graça, permitem ao homem aspirar a salvação, para o que é necessário o uso da liberdade.

Entre os humanistas e reformadores há alguns pontos de contato, porém notáveis diferenças também. Entre pontos de concordância, destacam-se o ataque que ambos fazem a teologia oficial e aos representantes da Igreja, a afirmação do papel central do homem no universo e o interesse despertado pelo tema da liberdade do homem. Sobre as diferenças, pode-se destacar que os humanistas salientam a bondade natural do homem enquanto os reformadores a negam. Para os reformadores o ser humano é mal por natureza e carece de liberdade, enquanto que o humanismo nega isto.

O humanismo faz do homem, um homem livre e crítico, capaz de pensar e agir sem a tirania de um poder eclesiástico medieval, que tem papel vital para a Reforma e abre caminho para a modernidade.

Especificamente tratando-se de Erasmo, pode-se dizer que este foi um intelectual humanista que procurou levar a cabo uma reforma na prática moral da Igreja de sua época: Erasmo tinha um plano próprio de reforma. Já em 1501, tinha publicado Enchiridion militis Christiani (Manual do Cristão Militante) no qual levantava fortes críticas a um cristianismo de baixa moralidade e caráter. Ali Erasmo pregava uma “religião interiorizada e humanizada”, vivida na prática “sem os excessos místicos de boa parte da Idade Média e também sem o racionalismo estéril do formalismo escolástico” [18]. O “Elogio da Loucura” segue, por assim dizer, um caminho parecido, onde, indiretamente, Erasmo tece críticas vigorosas a sociedade a ele contemporânea. Entre tais críticas, encontra-se a denúncia das nulidades presentes nas preocupações escolásticas, presas a questões insolúveis e distantes da situação existencial humana; a denúncia da indolência dos padres e sacerdotes, mais interessados na satisfação de seus deleites materiais do que na preservação da moral convalescente; e também a denúncia à religiosidade popular, satisfeita em ter suas superstições alimentadas a ter que mover-se de seu comodismo existencial. Outras críticas, não diretamente relacionadas à religiosidade medieval, completam o enredo de Moriae Encomium, todas elas direta ou indiretamente relacionadas à moral e as posturas humanas em meio à sociedade.

Erasmo escreveu outros inúmeros textos em relação ao cristianismo, a religiosidade e a Igreja de seus dias. Conta-se assim a mais antiga obra do autor, Antibarbarorum líber (1494), um panfleto revolucionário, sobre o qual recomendou-se a Erasmo a não publicação, tendo em vista sua violenta crítica contra os monges e teólogos[19]. Destaca-se também “Os Colóquios”[20], uma série de diálogos onde Erasmo ridiculariza, dentre outras coisas, as superstições populares promovidas pela Igreja, e “Consertando a paz da Igreja”, caracterizado por muitos como os pensamentos mais maduros do autor a respeito da Igreja. Acrescentam-se ainda os trabalhos de Erasmo como tradutor e comentarista de textos bíblicos: sua tradução acompanhada de comentário crítico do Novo Testamento se tornou um marco da análise literária da bíblia. Grande parte das críticas dos reformadores levadas a cabo contra a Igreja, foram por Erasmo precedidas, como trata de reconhecer o próprio Lutero em cartas escritas a Erasmo.

Seu contanto inicial com Lutero, jovem frade sobre o qual tem notícias de lhe ser até então um profundo admirador, remonta a uma carta escrita por Spalatinus, secretário do embaixador da Saxônia. Já por meio desta toma conhecimento da discordância de Lutero quanto à sua concepção do pecado original. A diferença entre ambos pensadores resultaria por fim nas obras “Sobre o Livre-Arbítrio” (1524) e “Do Servo Arbítrio” escritas por Erasmo e Lutero, respectivamente, em oposição um ao outro.

Erasmo não aderiu ao partido da Reforma. Recusou também um bispado, lhe oferecido desde que aderisse ao partido da Igreja Católica. Na verdade tinha seu próprio partido, caracterizado por um otimismo quanto à humanidade. Pensava que por influência da educação humanista, baseada no estudo das letras clássicas, a civilização atingiria um alto grau moral, fundado sobre a liberdade de pensamento e a solidariedade e fraternidade universal. Isto é o que se observa desde sua obra “Manual do Cristão Militante”. “Sua religião era a Humanidade, o amor ao gênero humano inteiro, acima da diferença de línguas, credos e filosofias”[21]. Em relação a isto e que se diz que Lutero tenha dito de Erasmo: “as coisas deste mundo têm, para Erasmo, maior importância do que as divinas”[22]. Com efeito, enquanto para o ex-monge de Wittenberg, “o essencial na Terra era o divino e o celeste, para Erasmo, ao contrário, como cidadão do mundo, apresentavam como primazia o humano e o terrestre”[23].

Foi, por fim, atacado por ambos os lados, os reformadores e católicos, e ainda pelos próprios humanistas, dado o seu posicionamento crítico entre os mesmos, que constantemente apresentavam-se excessivamente servis ante a antiguidade. Quanto a Lutero aplica-se a ele a seguinte afirmação: “vêde [sic] quanto veneno encerram os Colóquios de Erasmo! Em meu leito de morte exortarei meus filhos a não lê-los”, e ainda, “em meu testamento determino-vos a odiar e detestar essa víbora, chamada Erasmo de Roterdão, o maior celerado que jamais pisou a Terra, o mais encarniçado inimigo de Cristo”. Por parte da ala católica, Beda dizia, referindo-se a Erasmo: “Se me dessem crédito, era só através do fogo que se haveria de agir contra gente dessa espécie”[24]. A animosidade contra Erasmo por parte dos católicos observa-se até no século XVII, como se pode ver desde os sermões de Vieira: “e ainda não tinham saído do Inferno os Erasmos, os Luteros, os Calvinos e tantos outros monstros, em cujas heresias está ardendo hoje a França, a Holanda, a Inglaterra [...]”[25].

Pacifista, Erasmo via em Lutero muitas vezes um fanático. Ansiando por uma reforma não queria, entretanto, divisão. Sendo pacifista não queria a guerra. Focalizava sua reforma mais sobre o problema moral do que o doutrinário. Parecia estar certo ao repudiar as tendências de violência presentes na reforma, como pode ser notado desde a Guerra dos Camponeses e a Guerra dos Trinta Anos.


4. O ELOGIO DA LOUCURA: A MAGNA OBRA DE ERASMO

[...] esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais [...] Ireis, pois, ouvir o elogio, não de um Hércules ou de um Sólon, mas de mim mesma, isto é, da Loucura. (Elogio da Loucura)

Eu, a Sabedoria, tenho a prudência por morada, o senso de oportunidade, eu o descobri. Eu possuo o conselho e o sucesso; são meus entendimento e força [...] Dona Insensatez é agitada, é toda ignorância e não sabe nada. (Provérbios)

Filha de Plutão e gerada pela “mais bonita e alegre ninfa do mundo” - a Juventude - através do amor livre, destituído de subordinações matrimoniais, mas subordinado ao prazer nas Ilhas Afortunadas - pátria “onde a natureza não tem necessidade alguma da arte”, produzindo a terra “tudo quanto possa deleitar a vista e embriagar o olfato” - sobe ao palco a Loucura.[26]

A fim de apresentar seu próprio elogio, diante de uma platéia numerosa, os seres humanos, mais especificamente a sociedade européia contemporânea a Erasmo de Rotterdam – indivíduos ingratos e fingidos, que sendo “estultíssimos”, não manifestam, contudo, o reconhecimento que devem a esta que lhes fala - põe-se a dizer aberta e honestamente, sem parcas e obscuras definições, vãs retóricas ou insincera humildade, sobre a dívida que lhe deve a humanidade enquanto tal.

Para tanto segue acompanhada de sua especializada corte, afinal não fica bem a uma deusa a falta de sequazes. Nesta corte contam-se o amor-próprio, a adulação, o esquecimento, o horror a fadiga, a volúpia, a irreflexão, a delícia e, ainda, outros dois deuses, o prazer da mesa e o sono profundo.

A conclusão a que chega objetivamente é uma só: a felicidade humana, tendo em vista a sua condição desesperadora, somente é possível pelas benevolências por ela concedida. A legitimidade de sua condição divina está assim baseada na influência, necessidade e manifestação de seu poder, tanto entre os deuses quanto entre os seres humanos. Seu domínio por fim é “sobre todas as coisas”, sendo até os monarcas mais absolutos submetidos ao seu império.

O “Elogio da Loucura”, escrito por Erasmo em 1509, é uma obra prima do humanismo renascentista. Trata-se de uma sátira repleta de vigorosas críticas à sociedade de sua época, onde se inclui de modo específico, dentre outros, advogados, monges, filósofos, sofistas, monarcas, fidalgos, teólogos, sacerdotes e pontífices. Com ares de brincadeira, aos poucos vai tomando forma uma expressão clara, repleta de ironia e sarcasmo que aponta para a profunda contradição, nulidade e fantasia com que é marca a condição humana e seus atos em sociedade. Assim pode-se ver nesta obra profundidades filosóficas, mesmo que sob tons irônicos provenientes de certa “loucura”.

Observe-se, como exemplo, a descrição compassiva da existência humana, conforme apresentada por esta divindade:

Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma alta torre [...] todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel.[27]


Ou então sua lucidez questionadora, expressa nas seguintes palavras:


Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível vale de misérias.[28]

Ciente de sua imprescindibilidade e de seu domínio sobre a existência humana, adverte:

Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria.[29]


E sem muitos impedimentos esclarece:


[...] quanto o mundo duraria pouco, se a sabedoria fosse comum entre os mortais [...] mas também nesse caso, sou eu quem providência, mantendo os homens na ignorância, na irreflexão, no esquecimento dos males passados e na esperança de um futuro melhor. Misturando as minhas doçuras com as da volúpia, eu amenizo o rigor do seu destino.[30]


Quanto ao que aqui mais nos interessa, a saber, a relação de “O Elogio da Loucura” com o imaginário religioso e com a postura eclesiástica e clerical medieval, deva-se salientar que esta temática de forma alguma escapa de seu sarcasmo mordaz e significante. Tanto a religiosidade popular, quanto as minuciosas perscrutações escolásticas ou ainda os interesses clericais não declarados são reconhecidos sem hesitações pela Loucura, tão discriminada e mal quista:

Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos roubos como quando saíram da pia batismal. Tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações.[31]
Bem sei que os sacerdotes não são tão cegos que não compreendam deformidades tão vergonhosas; mas é que, em lugar de purgar o campo do Senhor, eles se empenham em semeá-lo e cultivá-lo de ervas daninhas, com toda a diligência, certos como estão de que estas costumam aumentar-lhes as ganhuças.[32]


Reconhece nos teólogos os seus mais fiéis e prediletos seguidores. Ainda assim, com cautela se dirige a estes, visto o poder de tais em perseguir, encarcerar e matar como hereges aqueles que se lhes opõem:

Mas não consiste somente nisso o armazém teológico; há ainda inúmeras outras argúcias, não menos frívolas e sutis do que as supracitadas. Tais são, por exemplo, o instante da geração divina, as noções, as relações, as formalidades, os quid, os ecce, e tantas outras quimeras de natureza semelhante. Duvido que alguém seja capaz de descobri-las, a não ser que tenha uma vista tão penetrante que lhe permita distinguir, através de densas nuvens, objetos inexistentes.[33]


Interesse é observar a sábia constatação da Loucura, sobre tais que se professam cristãos:

Oh! como são numerosos os que, em pleno meio-dia, acendem velas aos pés da Virgem Mãe de Deus! Ma s não se acha quase nenhum que siga os seus exemplos de castidade, de modéstia, de zelo pela causa da salvação. No entanto, a imitação das suas virtudes seria o único culto capaz de assegurar o céu aos devotos.[34]




5. ERASMO E LUTERO: CONSIDERAÇÕES FINAIS A PARTIR DAS CARTAS DE UM HUMANISTA CRISTÃO

Erasmo e Lutero foram dois vultos que deixaram uma influência muito grande na Europa pré moderna. A mente de ambos ultrapassava os limites de seu tempo, mesmo tendo posicionamentos diferentes em relação ao homem e sua relação com Deus e com a própria vida, entretanto, se aproximaram em pontos importantes, os quais não aceitavam os erros, a corrupção e a opressão da igreja oficial.

Para João Quartim de Moraes “ambos estavam mais preocupados com o significado do cristianismo enquanto religião do que com polêmicas teológicas”.[35] Embora, vale afirmar que também lidaram com perspectivas teológicas, principalmente Lutero. Moraes destaca que eles procuraram não se envolver nas sutilezas filosóficas com que a escolástica dos séculos XIII e XIV havia tratado e menciona um conflito estabelecido quando Lutero soube da publicação da obra De libero arbitrio por Erasmo, o qual envia uma carta em 1524 apelando para que Erasmo ficasse neutro entre a Reforma e a cúpula Romana. “Peço-te apenas que não publiques obras contra mim. De meu lado, abster-me-ei de escrever contra ti”. Erasmo não atendeu este pedido.[36] Os conflitos entre si foram vividos ao longo de suas vidas.

Erasmo e Lutero, praticamente se tornaram símbolos do humanismo e da Reforma. Cada um com sua importância, movimentos que tiveram alcances diferentes, conforme afirma Huizinga, o Renascimento atingiu apenas as elites sociais, “foi a roupa de domingo”[37], enquanto que a Reforma alcançou toda massa populacional européia. De qualquer forma não dá para pensar a Europa moderna e até mesmo pós moderna, sem analisar este período de transição, e não dá para analisar este período, sem uma pesquisa séria destes personagens. Embora Lutero seja muito mais pesquisado e discutido, Erasmo que foi tão proeminente, merece um lugar “mais ao sol” na pesquisa historiográfica.




6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAINTON, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.

CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas. 125-1550. II A Reforma Protestante. Edições 70. Lisboa, Portugal. 1975

DESIDERIUS, Erasmus. O Elogio da Loucura. In.: Coleção Os Pensadores – Erasmo e Thomas More. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 2ª ed.

LINS, Ivan. Erasmo, a Renascença e o Humanismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

MORAES, João Quartim. Erasmo e Lutero: Teologia e Reforma do Cristianismo. IFCH/UNICAMP. março/99

OLIN, John C. (org.) Christian Humanism and the Reformation – Desiderius Erasmus Selected Writings. New York : Harper Torchboocks / The Academy Library,1965.

ROPS, Daniel. A Igreja da Renascença e da Reforma (I). Trad. Emérico da Gama. Quadrante. São Paulo-SP, 1996.

www.das.ufsc.br/ander/estudos/soc_hist/13.htm

www.klepsidra.net/klepsidra6/areforma.html

ZWEING, Stefan. Erasmo de Rotterdam. Porto Alegre : Livraria do Globo, 1936.

[1]Artigo apresentado em cumprimento às exigências da disciplina “Religião e Religiosidade na época da Reforma” do curso de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) lecionada pelo Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth.
[2]O texto da coleção “Os Pensadores”, editado pela Abril Cultural, aponta para o fato de que os biógrafos oscilam entre os anos 1465 e 1469 quanto a datação do nascimento de Erasmo. Já a obra “Erasmo, a Renascença e o Humanismo”, de Ivan Lins, data o nascimento de Erasmo no ano de 1466. Tais incertezas justificam-se a partir do fato de Erasmo ter sido filho bastardo, tendo em vista que seu pai era uma clérigo da Igreja Romana.
[3]Outra dúvida biográfica apresenta-se quanto ao nome correto de seu pai. Assim a obra “Erasmo”, escrita por Pierre Mesnard, resume tal incerteza ao apontar para Gérard ou Geert. Ainda, o texto de Ivan Lins, apresenta como pai de Erasmo Gerrit Praet.
[4]Dúvidas surgem também quanto ao nome de batismo correto de Erasmo. Certo é que posteriormente passou a se chamar Desidério Erasmo, entretanto, quanto ao trato anterior conta-se no mínimo Gerrit Gerritzoon, “Geraldo, filho de Geraldo”, e Erasmus Rogerii.
[5]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p.XI.
[6]CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas. 125-1550. II A Reforma Protestante. Edições 70. Lisboa, Portugal. 1975, p. 13
[7]Idem. Ibidem. p.16
[8]ROPS, Daniel. A Igreja da Renascença e da Reforma (I). Trad. Emérico da Gama. Quadrante. São Paulo-SP, 1996.p.175
[9]Idem. ibidem. p.195
[10]Idem. ibidem.p.195
[11]Idem Ibidem. p. 192
[12]Idem.Ibidem. p. 193
[13]Idem, Ibidem. p.193
[14]Chaunu, op.cit.p.15
[15]www.das.ufsc.br/ander/estudos/soc_hist/13.htm
[16]Apud. Chaunu, op.cit.p.21
[17]www.das.ufsc.br/ander/estudos/soc_hist/13.htm
[18]Ibid., p. 14.
[19]Erasmo e a Revolução Humanista, p. 26.
[20]Modificado várias vezes até uma edição definitiva em 1533.
[21]LINS, Ivan. Erasmo, a renascença e o humanismo, p. 205.
[22]Ibid., p. 206.
[23]Ibid., p. 206.
[24]Ibid., p. 206.
[25]Ibid., p. 207.
[26]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p. 7-14.
[27]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p. 47.
[28]Ibid., p. 47.
[29]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p. 38.
[30]Ibid., p. 48.
[31]Ibid., p.67.
[32]Ibid., p. 70.
[33]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p., 96, 97.
[34]Ibid., p., 82.
[35]MORAES, João Quartim. Erasmo e Lutero: Teologia e Reforma do Cristianismo. IFCH/UNICAMP. março/99.p.12
[36]Idem. Ibidem. p. 13
[37]Www.klepsidra.net/klepsidra6/areforma.html