terça-feira, 6 de maio de 2014

A família e seus acúmulos

(Mateus 6:19-21). O mês de maio é propício para dar ênfase ao tema da família. É claro que essa abordagem se faz necessária o tempo todo. Não é tão simples refletir sobre a família, pois, em nosso tempo, de modo geral, a vida é pensada a partir do indivíduo e não a partir do coletivo. Isso significa dizer que o indivíduo tem olhado para todo grupo social, inclusive a família, apenas como um instrumento para lhe servir. Não se trata mais de uma aprendizagem de convivência, onde se desenvolvem afetos, limites. Parece que tem desenvolvido outra configuração. O primeiro referencial de coletividade, de pertencimento, é o lar, a família. O padrão ideal familiar; pai, mãe, filhos, numa relação de afeto e mutualidade, com papéis sociais definidos, tem sofrido transformações. Há o ideal, mas temos que considerar o real, que é muito presente em nossa sociedade. Hoje nós temos mães que criam filhos sozinhas, pais que também exercem essa função, avós que cuidam de netos, pois seus filhos, de forma irresponsável, acabam ‘colocando’ crianças no mundo e simplesmente transferem a responsabilidade aos avós. Algumas pessoas são saudosistas e afirmam: “Antigamente as famílias eram melhores. Não havia divórcios, os filhos eram obedientes.” Diante de afirmações assim, temos que perguntar: Antigamente, mesmo não tendo casos de divórcios, será que os casamentos eram saudáveis e bem sucedidos? Será que as mulheres, que eram totalmente dependentes do marido, eram felizes ou suportavam por não terem outra opção? Será que os filhos eram tão obedientes assim, ou viviam sob opressão? Respeitavam os pais ou tinham medo? Essas perguntas são importantes, mas devemos ter o cuidado de não generalizar as respostas. Voltando ao texto bíblico lido, Jesus fala sobre dois tipos de acúmulos. “Acúmulo de tesouros na terra e acúmulo de tesouros nos céus.” Ele é bem enfático quando afirma: “ Pois onde estiver o seu coração, aí também estará o seu coração.” ( Mt 6:21). Faz um alerta ao perigo de viver em função do acúmulo de riquezas. A única vez que Jesus faz menção, de forma direta, a respeito de outro deus (idolatria) é quando fala do dinheiro ( Mamom) ( Mt 6:24). O viver para acumular acaba fazendo com que as atenções sejam voltadas apenas para isso. A família se torna um meio, isto é, a educação dos filhos visa alcançar dinheiro, o trabalho só tem essa finalidade, a prioridade é essa. Lembro-me certa vez, quando fazia um curso, uma colega perguntou a outra: “ Como vai seu filho?” A resposta foi: “ Ah, ele está bem, o casamento dele está quase acabando, mas ele está ganhando bastante dinheiro, isso é que importa.” Isso retrata bem o significado de acumular riquezas. Sempre alguém perde com isso, pois há feridas perenes, rompimento de relacionamentos, homicídios e roubos. Como uma frase que li recentemente: “As pessoas têm seu valor, algumas têm seu preço”. O dinheiro não é o problema, mas o viver para ele é idolátrico, doentio. Muitas pessoas não têm condições de acumular tanto dinheiro, mas vivem acumulando outras coisas, que não são materiais, mas acabam se “materializando”. Acumulam ressentimentos, ódio, amargura, fardos emocionais, intolerância, medo, culpa, peso. Vivemos hoje um acúmulo de informações e ‘comunicações’. Isso não significa que as pessoas estão ouvindo umas as outras. Há muita informação, mas uma carência de ouvidos, de atenção, inclusive dentro do lar, dentro do mesmo quarto, na mesma cama. Casais que acumularam tantas experiências negativas, que têm muita dificuldade de vivenciar um novo tempo. Há aqueles que não sabem, mas amam viver de autocomiseração.( v.33) “ Se os seus olhos forem maus, todo seu corpo será cheio de trevas.” Felizmente o texto aborda um acúmulo positivo. “ Tesouro nos céus” (Mt 6:20). Importante destacar que o texto não diz “ tesouro para o céu”, mas “tesouro nos céus.” No evangelho de Mateus, não se refere a um lugar, mas a valores. “Céus” (grego ouranos), nesse texto, tem a ver com uma forma de viver, não um lugar. Não podemos entender esse “tesouro nos céus” como se fosse uma espécie de entrada para um financiamento imobiliário para o céu. Vale a leitura do v.22. “ Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz.” Diante disso, a recomendação é para que se acumule valores e atitudes que tem a ver com o Reino de Deus. Perdão, afeto, esperança, respeito, tolerância, oração. É quando, dentro de casa, fica claro as escalas de valores. Pessoas são mais importantes que coisas, a família vale mais que qualquer riqueza. Atenção é mais importante que os resultados. Os limites são compreendidos pela disciplina com amor. A espiritualidade é algo assumido e vivenciado de forma séria, o relacionamento com Deus e com sua palavra têm significado profundo. O comunitário é experimentado e tido como algo de extrema relevância. De qualquer forma,buscamos acúmulos. Obviamente acumulamos aquilo que é mais importante para nós. Cabe uma pergunta: Onde está nosso tesouro? Essa pergunta é importante, pois, segundo Jesus, é lá que estará nosso coração. Pensando na família; o que temos acumulado em nossas relações? Que Deus nos ajude!

terça-feira, 25 de março de 2014

Discernir a voz

“ O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e tenham plenamente.” ( Jo 10:10). Sempre que pensamos em oração, associamos apenas ao falar, pedir algo a Deus. Oração não é monólogo, mas é diálogo, ou seja, falamos, mas também ouvimos, percebemos, entendemos o que o Senhor mostra. Orar tem muito a ver com o que enxergamos e ouvimos, com o que nos direciona. Por uma questão de regra básica de interpretação de texto, um versículo não deve ser interpretado isoladamente, pois faz parte de todo um contexto histórico e cultural. Está inserido dentro de uma realidade a qual não podemos ignorar. O contexto do versículo lido começa no capítulo 9, onde aborda relato da cura de um cego de nascença e todas as conseqüências desse ato. Havia muitas crenças por trás da cegueira de nascença. Muitos acreditavam que a cegueira era um castigo de Deus, inclusive alguns discípulos de Jesus acreditavam nisso (9:1,2). Havia também compreensão por parte de alguns que somente o Messias poderia curar um cego de nascença. Jesus cura um cego de nascença, que além de cego era mendigo. Aliás, não teria outra opção a não ser mendigar, não havia nenhuma ajuda do Estado, não havia inclusão social, nem vagas para deficientes no mercado. Essa cura aconteceu no Sábado. Isso provoca um problema sério entre os fariseus. Curar um cego de nascença no Sábado. Com certeza algumas perguntas surgiram, inclusive algumas relatadas no texto. “ Quem o curou?” “Como pode curar no Sábado?” “ Como pode acontecer algo assim sem que passe por nós que zelamos da lei?” “Estamos perdendo o controle da situação?” Em nenhum momento se alegraram com a cura daquele homem! Apenas se preocuparam em esclarecer os fatos e não perderem o controle da situação. Jesus então diz “ Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos.” ( 9:39). Ele estava afirmando que quem acha que enxerga se torna cego diante da vida, da graça, mas quem é cego vai ver a graça, o amor de Deus. Após isso ele continua, usando metáforas do pastoreio no capítulo 10. Os fariseus não gostavam de pastores, mas Jesus usa essa linguagem. Ovelhas, pastor, porta, aprisco, ladrão. Jesus se denomina ‘porta’ e ‘pastor’. O pastor conhece as ovelhas e as ovelhas conhecem sua voz o segue. (10:4,16). Ele afirma: “O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e tenham plenamente.” ( Jo 10:10). Diante disso; quem é o ladrão? De acordo com o texto, o ladrão são os fariseus que se recusavam a aceitar a ação de Deus na vida daquele homem e também se recusavam a tratar as pessoas com dignidade, respeito e amor ( 10:1) ...”quem sobe por outro lugar, que não a porta, é ladrão e assaltante.” Quem não entra pela porta é ladrão. Quem não age de acordo com Jesus, que não cuida das pessoas como ele, mas quer controlá-las, manipulá-las, esse é ladrão. O ladrão não respeita sentimentos, não respeita a dignidade, nem o sofrimento, só pensa em si. O sistema religioso nos dias de Jesus estava corrompido, usava as pessoas, explorava. Jesus não está falando do Diabo, mas de pessoas. Hoje, quem seria o ladrão? Aquele que não ama a família, mas rouba a esperança, mata de tristeza e destrói a alegria dentro de casa. O marido e a mulher que não se respeitam. É o patrão que explora o empregado, o empregado que engana o patrão. O Estado que não cuida dos mais pobres, negligenciando os cuidados básicos. Permite que pessoas morram sem cuidado médico nos corredores dos hospitais públicos, que cobra tantos impostos mas não se importa com as pessoas. Não pune os poderosos que cometem crimes, corruptos e corruptores. Ladrão também é o que usa de violência de todo tipo, é o intolerante com o que é diferente de seu modo de ver. É o que usa o nome de Deus para enganar as pessoas. O ladrão não se importa com a dor dos outros, não se importa em ferir, mesmo em nome de uma “verdade” que tanto defende. Fere com zelo, mas nunca ama com graça. Outra pergunta a ser pensada: O que é ter vida plena ou em abundância? É ser guiado pelo Bom pastor. Uma vida justa, liberta e em paz. É a convicção da aceitação de Deus para uma vida eterna. Uma vida transformada, com novos valores, com entendimento espiritual, marcada pela graça e amor de Deus. Uma vida que se alegra na comunhão, que reconhece o agir e direção de Deus. Uma vida que se sente amada, tratada com respeito, que também aprende com Jesus o valor da vida. Não mendiga vida, mas a vive com abundância, mesmo em meio aos problemas, pois vive numa relação com o autor da vida, compreende as limitações e dores dos outros, não acusa, mas ama a justiça. Vivemos um tempo de muitas vozes: - A pressão pelo sucesso a todo custo. - O prazer a todo custo ( hedonismo). - O poder a todo custo. ( violência, engano). Gente de oração aprende a ouvir a voz do Bom pastor e segui-lo. Não fica pensando só em si e em seus problemas. Tem discernimento das vozes, sabe reconhecer o ladrão e não se amoldar a ele. O difícil na oração não é falar, mas ouvir e se direcionar pela voz do que disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham plenamente.” Que Deus nos ajude!

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O Pão Nosso de cada dia nos dá HOJE

“O pão nosso de cada dia nos dá hoje” ( Mateus 6:11). Certa vez Leonardo Boff afirmou que não há “Pai nosso” sem “Pão nosso”. Sua afirmação tem todo sentido. O pão é o sustento, a comida na mesa. Não creio que se trata de algo metafórico, mas concreto. Nos dias de Jesus a culinária não era vasta, o comum era pão, peixe e vinho; para os que tinham! É muito comum o Evangelho de Mateus nos remeter ao Livro do Êxodo. O pão traz à memória o ‘maná’ do deserto ( Êx 16). Era dado por Deus diariamente e deveria ser comido no dia, sem desperdício e sem acumular para o dia seguinte. Com exceção do sexto dia, onde era necessário “colher” a parte do sétimo dia também. O ‘Maná’ era o viver diário, o viver o hoje. Viver o hoje é um grande desafio para todos nós. Parece que nossa mente e coração sempre nos remetem ao futuro; contas a vencer, futuro dos filhos, financiamento, faculdade etc. Tudo é muito rápido, a velocidade é cibernética. Há também os saudosistas, que não pensam tanto no futuro, mas vivem do passado! Milton Schwantes ao mencionar o “pão nosso de cada dia”, destaca que quem tem fome não pensa no futuro, quer viver o presente, quer o agora. O estômago não vive vislumbrando o futuro, nem contemplando o passado, ele precisa ser atendido hoje. Também não vive para acumular! Se nossa mente e coração insistem em não viver o hoje, nosso estômago nos lembra que o hoje é tudo o que temos. O pão nos iguala! Temos essa necessidade, independentemente da classe social, nível intelectual ou cultural. Diante do pão, da mesa, do comer, percebemos a simplicidade que é tão esquecida. O comer, parar, sentar, o viver os relacionamentos ao redor da mesa, a dignidade humana. Menos correria mais reino de Deus, menos stress mais vida! Caímos na real que não somos máquinas. “O pão nosso de cada dia” também é fruto de amor e justiça, é um apelo profético. O mundo teme a escassez de alimento, afinal somos hoje sete bilhões de habitantes no planeta. O problema não é simplesmente a escassez de alimento, é a escassez da partilha, da misericórdia, da justiça, do amor. Onde boa parte dos grãos produzidos no Brasil é utilizada para alimentar gado na Europa e em alguns países asiáticos. Onde o desperdício de comida é gritante e muitos ainda passam fome. Pão e oração tem tudo a ver. Gente de oração tem consciência de sua dependência de Deus, ama a justiça, a partilha e busca aprender a viver o hoje, sem mediocridade, nem negligência com planejamento para o futuro, mas com simplicidade, com humanidade!

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

“Tu és o Deus que me vê”

Hagar era estrangeira (egípcia) e escrava de Sarai (esposa de Abrão). Uma ‘tríade’ bastante excludente - mulher, escrava e estrangeira – num sistema patriarcal. Acaba envolvida em uma situação de frustração de sua senhora com a cumplicidade de seu senhor. Sarai não podia ter filhos e propõe a Abrão que tenha um filho com Hagar. Esse, por sua vez, aprova a ideia, afinal, deitar-se com Hagar, jovem e bonita, não seria para ele uma má ideia! Ou talvez ele pensasse que isso seria uma forma de apaziguar o coração de sua mulher. Vale lembrar que ele havia recebido a promessa do Senhor de que seria pai de uma grande descendência. Hagar acaba ficando grávida de Abrão, e a partir de então sua vida se torna muito difícil! Passa a ter sérios conflitos com sua senhora, talvez por ciúmes, afinal, agora a jovem seria mãe e ela não. O texto bíblico diz que “Sarai tanto maltratou Hagar que esta acabou fugindo” ( Gn 16:6). Em meio à frustração de Sarai e a omissão de Abrão, Hagar é que sofre as consequências. Afinal, a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco! Ela, em desespero, foge para o deserto. O que uma mulher grávida, humilhada, oprimida e sozinha poderia esperar no deserto? Talvez a morte, ou quem sabe a possibilidade de encontrar ajuda. Mas ela tem uma experiência profunda com Deus. Aquilo que em religião é chamado de epifania (manifestação de Deus). Recebe o consolo, o encorajamento. Uma escrava agora recebe o conforto divino. Hagar é primeira mulher na Bíblia a viver essa experiência. “Este foi o nome que ela deu ao Senhor que lhe havia falado: “Tu és o Deus que me vê.” ( Gn 16:13). Ela volta para a casa de sua senhora. O tempo passa, seu filho ( Ismael) nasce. Mas a história volta a repetir-se. O pesadelo volta! Dessa vez ela é expulsa de casa com seu filho. Ela e o menino no deserto. “Quando acabou a água da vasilha, ela deixou o menino debaixo de um arbusto e foi sentar-se perto dali, à distância de um tiro de flecha, porque pensou: “não posso ver o menino morrer.” Sentada ali perto, começou a chorar.’ (Gn 21:15,16). Fico imaginando a cena: uma mãe se afasta do filho para não vê-lo morrer de sede no calor escaldante do deserto. Mais uma vez o Senhor se revela a ela e a socorre, juntamente com seu filho. Mais uma vez o “Deus que me vê”, visita Hagar. O Deus que vê o que está no mais profundo do ser. Que vê os medos, dúvidas, incertezas, solidão, que vê a humilhação enfrentada, que vê a dor, que vê a vontade de viver com dignidade. O “Deus que me vê” e que está ao lado. Que compreende o que ninguém compreende. Hagar é uma das pessoas da Bíblia menos compreendidas, afinal, ela foi apenas uma “aventura” na vida de um casal, apenas uma escrava estrangeira. É vítima de pessoas que seguem a Deus, mas que não conseguem lidar com as próprias frustrações, ansiedade e insensibilidade, apesar de bem intencionados. Abrão, homem que Deus chama para uma missão especial e Sarai, sua esposa. Entre opressores e vítima, o que se vê é a dura tentativa de ajustar as coisas depois que elas estão feitas. Depois que as decisões são tomadas, principalmente quando se quer assumir o controle, mas sem a direção de Deus. O que se tem é sofrimento, feridas e muito choro. Felizmente, Deus é maior que isso tudo. Deus é maior que a cultura patriarcal, se revela a uma mulher, escrava e estrangeira. Deus é maior que as incoerências humanas, que os erros de quem não poderia errar. Felizmente, Deus é o Deus que vê! Que caminha no deserto, em meio às lágrimas de uma mãe, a fragilidade de uma criança, e a esperança de um recomeço!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Compaixão X Incômodo

Quando Jesus saiu do barco e viu uma grande multidão, teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Então começou a ensinar-lhes muitas coisas. Já era tarde e, por isso, os seus discípulos aproximaram-se dele e disseram: “Este é um lugar deserto, e já é tarde. Manda embora o povo para que possa ir aos campos e povoados vizinhos comprar algo para comer”. Ele, porém, respondeu: “Deem-lhes vocês algo para comer!” ( Marcos 6:34-37 – NVI). O Evangelho de Marcos constantemente destaca a compaixão de Jesus. A forma como ele olha as pessoas, a situação que elas vivem, aquilo que elas buscam. A grande maioria dessas pessoas era tida como impura pelos líderes religiosos, que seguiam o chamado ‘código da pureza’, um código que impunha uma forma de vida baseada em cerimonialismo e exigências que só eles ( líderes religiosos) “conseguiam” cumprir. A maior parte das pessoas era de gente pobre, enfermos, mulheres, crianças, homens sem trabalho, sem a aprovação desse código. Ali provavelmente havia mulheres que foram violentadas, estupradas, talvez idosos, pessoas que só queriam viver com dignidade. Além disso, o jugo do império romano piorava ainda mais a situação. Obviamente quando essas pessoas ficaram sabendo de um certo galileu, um nazareno que estava curando, libertando, ensinando algo novo, uma mensagem de esperança; elas iriam atrás dele, seja onde for! Talvez alguns tinham apenas um desejo pessoal, outros acreditavam na possiblidade de ter de volta a liberdade e a conquista da terra, um novo reino davídico. Alguns outros queriam apenas condições de dar uma vida melhor à suas famílias. O fato é que quando Jesus viu a grande multidão, ele teve compaixão. Os discípulos tiveram outro olhar. Eles viram que o lugar era deserto e que já era tarde. Propuseram a Jesus que mandasse as pessoas embora, assim comprariam algo para comer. A impressão é que eles queriam se livrar do problema, sabiam que não tinham como comprar, nem onde. Quem sabe eles sentiram-se impotentes diante de tanta gente com fome em um lugar árido. Jesus, então, confrontou seus discípulos dizendo-lhes que dessem a multidão algo para comer e não a dispensasse como haviam proposto. Não seria novidade dispensar, afinal, o quotidiano do povo era ser dispensado. Aquelas pessoas eram dispensáveis para o poder religioso e para Roma. Para os discípulos era um incômodo. Eles estavam numa situação difícil! Jesus realiza o chamado milagre da multiplicação dos pães. A discussão não está no milagre em si, mas na dignidade que Ele dá a essas pessoas, a compaixão que toma o coração de Jesus. O difícil não é fazer uma análise da situação, do abandono do sistema, da exclusão social, das necessidades gritantes. O difícil é a compaixão estar no coração, como esteve em Jesus. O difícil é não se acostumar com a maldade, com a indignidade na vida das famílias, com a violência. Os religiosos viram pessoas impuras, os romanos viram um 'bando' de miseráveis, os discípulos viram um incômodo, mas Jesus viu pessoas, perdidas, sem rumo, buscando algo, buscando vida. Jesus não mudou o sistema, mas ensinou compaixão, ensinou que o Reino de Deus resgata a dignidade humana, apresentando uma vida de esperança e aceitação de Deus, de um Deus que não está ‘preocupado’ com os cerimoniais de pureza, mas com a transformação de vida dos fracos, indefesos e perdidos. Uma outra lógica, um outro olhar.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A tentação do Controle Absoluto

“Então o Diabo o levou a cidade santa, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse:” Se és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Pois está escrito: “ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, e com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra.” Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus.”( Mateus 4:5-7). Jesus é colocado na cidade santa, na parte mais alta do templo e é confrontado com as escrituras. Uma tríade sagrada para o judaísmo: Jerusalém, templo e escrituras. A citação das escrituras é feita de forma manipuladora, afinal, quem se joga não tropeça, cai. Só pode tropeçar quem caminha, quem está se movendo, quem está em direção à algum lugar. Quem se joga não olha para frente, apenas para baixo. A tentação é a seguinte: ‘Olha Jesus, você tem o sagrado a seu favor, então você pode controlar tudo, faça o que quiser que Deus estará à sua disposição.’ Por mais absurdo que pareça, é a tentação de controlar Deus. É a tentação de um controle absoluto. Controlar Deus, a verdade, as pessoas, a vida. Isso se dá de várias maneiras. Quando pais controlam todas as decisões dos filhos. Da mesma forma, quando os filhos controlam as ações dos pais e esses vivem apenas em função deles. Quando líderes tentam controlar a consciência das pessoas, quando o fundamentalismo quer controlar a verdade, quando homens e mulheres querem fazer Deus “funcionar.” Não se trata apenas de uma tentação de Jesus, mas de todos nós. Há algumas coisas na vida que podem ser controladas, por exemplo: finanças, peso, agenda etc. O problema é querer controlar aquilo que não é possível, que foge do limite da força. Quando a pessoa acredita que tem que estar no controle absoluto da situação, quando tudo tem que girar a seu favor. Como lidar com isso? Quem sabe começando a compreender que Deus não é controlável, nem tampouco controla como um dono, mas como alguém que caminha ao lado, que ensina a viver. Pode ser uma grande angústia saber que não controlamos tudo, que a vida não está totalmente sob nosso controle. Que ainda não vencemos todos os temores, que estamos sujeitos a enfermidades, que temos dúvidas, que a dor às vezes nos cerca. Daí a grande oportunidade de pararmos de achar que só viveremos bem se tudo estiver em nosso controle. Também a possibilidade de descansarmos na graça de Jesus e confiarmos no seu amor. A tentativa de ter o controle absoluto da vida nada mais é que desconfiar Daquele que nos convida a andar em sua dependência. Que Deus nos ajude!

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O mágico/imediato. A tentação do imediatismo.

Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. Depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. O tentador aproximou-se dele e disse: “Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.” Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.’ ( Mateus 4:3,4). Após o batismo, Jesus é conduzido ao deserto pelo Espírito. O deserto, segundo alguns místicos orientais, retrata a condição humana. Lugar extremamente quente durante o dia, mas bastante frio à noite. Um lugar de contrastes. Beleza e solidão, silêncio e inquietação, imensidão e finitude. Outro relato bíblico que apresenta a tentação está no Gênesis. Adão é tentado no Éden, no paraíso. Não falta nada, tudo está em equilíbrio. Éden e deserto são ambientes diferentes, mas o que há em comum é a tentação. Adão e Jesus, pessoas diferentes, mas com o mesmo conflito. Geralmente quando se pensa em tentação, as pessoas, principalmente as mais moralistas, associam com questões sexuais. É obvio que se trata de algo muito mais complexo. A tentação é um convite à divinização do EGO. A primeira tentação a Jesus no deserto foi: “ Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.” ( Mt 4:3). É como se o Diabo dissesse: “ Se és, então prova.” “Faz uma mágica aí! ” “ Dê um jeitinho.” “ Não perca tempo”. É a tentação pelo mágico, pelo imediato. O imediatismo é a tirania da pressa, o reducionismo da vida. Concentram-se todos os esforços, pensamentos, sentimentos e vontade à apenas um momento. Jesus responde: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.” ( Mt 4:4). Jesus não está ignorando a necessidade do pão, do comer, afinal quem tem fome quer comer. O que ele destaca é que não só de pão, daquilo que atende só a uma necessidade, mas de algo que vai além, que atenda a existência, o ser, a vida. Que oferece sentido e direção. Isso é uma construção, não é encontrado com ‘mágica’, mas num relacionamento com Deus. Essa palavra que procede da boca de Deus deve ser ouvida, percebida, não apenas com os ouvidos, mas com o espírito. Para ouvir é preciso parar, prestar atenção, estar sensível. Não importa o ambiente, paraíso ou deserto, afinal, o problema não é necessariamente o ambiente, mas a tentação. Talvez para alguns o tentador seja o foco, eu prefiro pensar em como o (a) tentado (a) lida com a tentação. Se se concentra no mágico/ imediato (imediatismo) ou se busca perceber Deus na caminhada, não apenas no momento, mas no processo. O processo, para Deus, parece ser mais importante que o fim. Os resultados atraem, mas podem impedir de perceber o que acontece no caminho. No caminho se faz amigos, há sonhos, aprendizagem, descobertas, risos com os filhos, celebração, choro. É nesse caminho que se vive da palavra de Deus. O mágico imediato entende Deus apenas como uma solução para seus problemas. Quem vive da palavra de Deus entende Deus como alguém que se relaciona, que entende os dilemas e inquietações mais profundas e oferece sentido e direção, numa dimensão de amor. O mágico/imediato (imediatismo) é a “maquinificação” da vida e da fé, a busca do pronto, do acabado. Realmente é uma grande tentação, mas, como pediu Jesus, na oração do Pai nosso: “Não nos deixe cair em tentação.”