quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Adoração

Sermão pregado na SIB de Jacupiranga no dia 22 de Novembro (domingo) pela manhã.

“Faltavam apenas dois dias para a Páscoa e para a festa dos pães sem fermento. Os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei estavam procurando um meio de flagrar Jesus em algum erro e matá-lo. Mas diziam: ‘ Não durante a festa, para que não haja tumulto entre o povo.’ Estando Jesus em Betânia, reclinado à mesa na casa de um homem conhecido como Simão, o leproso, aproximou-se dele certa mulher com um frasco de alabastro contendo um perfume muito caro, feito de nardo puro. Ela quebrou o frasco e derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus. Alguns dos presentes começaram a dizer uns aos outros, indignados: ‘Por que este desperdício de perfume? Ele poderia ter vendido por trezentos denários, e o dinheiro ser dado aos pobres’. E a repreendiam severamente. ‘Deixem-na em paz’, disse Jesus. Porque a estão perturbando? Ela praticou uma boa ação para comigo. Pois os pobres vocês sempre terão com vocês. Mas a mim nem sempre terão. Ela fez o que pôde. Derramou o perfume em meu corpo antecipadamente, preparando-o para o sepultamento. Eu lhes asseguro que onde quer que o evangelho for anunciado, em todo o mundo, também o que ela fez será contado em sua memória. Então Judas Iscariotes, um dos doze, dirigiu-se aos chefes dos sacerdotes a fim de lhes entregar Jesus. A proposta muito os alegrou, e lhe prometeram muito dinheiro. Assim, ele procurava uma oportunidade para entregá-lo.”(Marcos 14:1-11)

Muita coisa se fala de adoração. Acredito que seja muito importante se falar nesse assunto. Mas a adoração deve ser construída a partir de uma teologia muito bem analisada sobre Jesus. Afinal somos cristãos e não judeus. Ao analisarmos adoração somente sob o viés do Antigo Testamento, sem um olhar em Jesus e em sua mensagem, nos tornamos quase que judeus. Mas também não podemos olhar para Jesus somente como o salvador das nossas vidas, que morreu em nosso lugar (ele foi de fato), mas precisamos compreender o teor de sua mensagem de Reino de Deus, em especial nos evangelhos. A partir disto então, podemos pensar sobre adoração.

Estamos diante de um texto marcante e desafiador. Durante muito tempo fiquei pensando sobre o que Jesus quis dizer sobre ‘onde o evangelho for anunciado, em todo o mundo, também o que ela fez será contado em sua memória.’ (v.9). A atitude da mulher foi algo que desafiou a compreensão de todos os que ali estavam, mas Jesus percebeu nela algo que nem em seus discípulos havia percebido. Ela Compreendeu a real mensagem de Jesus. Para tentar explicar isto de forma mais clara, vamos pensar o que Jesus representava para as pessoas ali presentes: os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei, alguns dos presentes na casa, Judas Iscariotes e a mulher.


1.Jesus representava uma ameaça

Ameaça para os mestres da lei e aos chefes dos sacerdotes. A lógica da pureza se tornara predominante em Jerusalém. Jesus não concordava com essa lógica, pois ela colocava Deus como um Deus distante, punitivo, vingativo. Excluía os pobres, doentes, mais fracos. Era o sistema religioso que predominava no sul, na Judéia e Jerusalém. A vida e a mensagem de Jesus incomodavam, pois tirava dos sacerdotes a prerrogativa da purificação. Jesus perdoava pecados, tocava em leprosos e ensinava isso como Reino de Deus. Ele mostrava que o elemento escatológico não era um Deus punindo o mundo com sua ira, mas um Deus presente na vida dos sofredores.‘ Os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei estavam procurando um meio de flagrar Jesus em algum erro e matá-lo. (v.1) Mas diziam: “ Não durante a festa, para que não haja tumulto entre o povo.” (v.2).’

Queriam acabar com a ameaça. Jesus era uma ameaça a todo o sistema religioso da época. Sua vida e sua mensagem poderiam acabar com a tradição da lógica da pureza. Jesus não excluía, estava na casa de Simão, o leproso. Convivia com pessoas comuns, vinha da Galiléia. Não era alguém do centro sócio-religioso, mas um periférico.


2.Uma Decepção

Para Judas Iscariotes, Jesus foi uma decepção. Ele não era um líder revolucionário como esperava. Judas era provavelmente um Zelota, um radical, que acreditava em uma revolução com armas. Por isso, imaginou que Jesus seria o grande líder desta revolta. Ele foi traidor, mas também traído por usa ideologia de revolução. (v.9)

Jesus pode ser uma decepção para muitos, pois ele pode não representar aquilo que imaginam ou esperam. Há muitas expectativas erradas sobre Jesus. Ele não é a solução para todos os problemas, mas ele tem uma mensagem do Reino de Deus.


3. Deus 'entre' e 'para' os fracos

Aquela mulher entendeu isto. E por conta dessa compreensão derramou o que ela tinha de mais precioso em Jesus. Viu em Jesus o perdão, a humildade, a humanidade, a graça Muitos ficaram indignados (v.4). Mencionaram até a venda deste perfume para doar aos pobres. Ele custava o equivalente a quase um ano de trabalho. ‘Ela derramou o perfume em meu corpo antecipadamente, preparando-o para o sepultamento. (v.8).’

A mulher percebeu que a morte se aproximava de Jesus. Os profetas tinham a morte, o assassinato como fim, pois incomodavam. Ela viu em Jesus alguém que apresentou a vida com outros olhos, que amou, que andou com pessoas esquecidas, abandonadas, que não buscou fama, riqueza, mas que apresentou Deus como alguém entre os mais fracos. Aquela mulher entendeu a mensagem do Reino. Por isso o adorou. Por isso o homenageou e nem se deu conta dos demais líderes ali presente. Jesus diz que esse Ato jamais seria esquecido (v.9). Adoração deve partir de uma compreensão de Jesus, de sua mensagem de reino.


Conclusão:

Adoração deve passar sob o viés de Jesus de Nazaré, sob a perspectiva que temos em relação a sua vida e mensagem, principalmente a mensagem do Reino de Deus. Um perfume caro foi derramado sobre ele, por uma mulher que adorou. Não podemos reduzir a adoração a apenas cânticos de louvor ou momentos do culto, mas adorar com a vida, quando compreendemos o reino de Deus, permitindo que Deus, através de nós, se faça presente entre os mais fracos.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Milton Nascimento (Caetano Veloso) Terceira Margem do Rio

Homenagem ao meu irmão Clademilson Fernandes Paulino da Silva. Recentemente concluiu seu Doutorado em Ciências da Religião. Pesquisou o sagrado em Guimarães Rosa. Além de pesquisador é alguém que ousa a buscar a 'terceira margem do rio.'

O trágico e o belo na condição humana- parte II

“A que posso comparar esta geração? São como crianças que ficam sentadas nas praças e gritam umas às outras: ‘Nós lhe tocamos flauta, mas vocês não dançaram; cantamos um lamento, mas vocês não se entristeceram’.” ( Mateus 11:16,17).

Um dos melhores momentos para uma pessoa é quando ela se depara com sua finitude e percebe que precisa aproveitar bem todas as fases da vida. Infelizmente a grande angústia para muitos é lidar com isso, com as fases da vida. Há pessoas que insistem em recusar a fase que vive. Talvez por isso o sonho de consumo de muitos é uma cirurgia plástica ou uma lipo aspiração. A estética a todo custo, juntamente com o prazer a todo custo, têm causado um drama, pois essa obsessão pela “beleza” tem tornado as pessoas vítimas de uma exclusão. A vida passa a ser bela apenas para alguns, para aqueles que têm recursos e conseguem manter uma aparência mais jovem.

Uma postura dessas, além de não conhecer o significado de humanidade, não consegue compreender o real significado do belo. O que é o belo na vida? O que leva as pessoas a lutarem contra a própria vida em busca de algo que tão irreal? Interessante notar alguns adultos que usam roupas de adolescentes. Ouvi outro dia um ‘causo’: “um menino estava chorando, quando um velhinho viu e resolveu perguntar o motivo daquele choro. O menino então respondeu ao velho: “Eu estou chorando porque queria ter dezoito anos.” O velho olhou para o menino e também começou a chorar, dizendo: “ Eu também queria ter dezoito anos.”

O descontentamento com o próprio corpo tem causado doenças que nossas avós talvez jamais imaginassem existir: bulimia, anorexia. Como pode a luta pela beleza se tornar a tragédia na vida de pessoas? Esse desejo frenético pelo ‘belo’ tem sido vivido não só na individualidade das pessoas, mas também nas instâncias sociais e religiosas. O anseio de mostrar que é belo, jovem, representa a tentativa de mostrar que tem mais vida, mais poder. Não é difícil perceber isso no cenário religioso. Quem pode me explicar qual o sentido de uma ‘marcha para Jesus’? O que isso tem de significado concreto? Ou o que isso tem de relevância para o evangelho? Talvez tenha algum significado estético, isso eu concordo!

O que dizer de templos suntuosos ou de concorrência entre mega igrejas, que são muito “atrativas”, com suas estruturas “salomônicas” e empresariais, mas que têm dificuldade de conhecer a dor das viúvas, dos doentes, dos desempregados, dos viciados. É claro que isso atinge a todos, as megas e as pequenas igrejas. Programas televisivos que usam a mídia como meio de mostrar prestígio e poder, muito mais do que para levar o evangelho (há exceções).

A luta pelo estético tem sido maior do que a luta pela beleza da vida, pela beleza da justiça, pela beleza do sorriso das crianças e dos velhos. Como pensar igreja e até mesmo uma denominação apenas a partir de sua liturgia e não perceber que a beleza da igreja está nas pessoas e em Jesus. Mas essas pessoas são de carne e osso, que vivem as lutas do cotidiano, que querem ser notadas, não pela beleza de seus corpos, não pelos hinos que cantam, não pela tradição eclesiástica, mas pela beleza de suas vidas.

Nossa teologia poderia ser mais parecida com a de Juan Luis Segundo: “Uma teologia com sabor de vida.” Por isso eu acredito que a beleza da vida esteja realmente no dançar ao som das flautas e no chorar com o lamento, não como crianças birrentas que fazem o contrário, mas como pessoas conscientes que sabem discernir a fase da dança e a fase do lamento, vivendo cada fase da vida com dignidade e liberdade. (Mt 11:16,17)

Claudinei Fernandes

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O trágico e o belo na condição humana – parte I

Às vezes fico imaginando como seria melhor se a vida fosse menos complicada! Mas quando reflito um pouco mais, pergunto a mim mesmo: “Se a vida fosse menos complicada, seria vida?” Há muitas tentativas de compreender ou até mesmo de explicar a condição humana. Dentre essas tentativas há a forte presença da religião. Em relação ao cristianismo, a perspectiva mais conservadora aponta como causa da ‘tragicidade’, o problema do pecado. Alguns mais ‘místicos’ preferem protagonizar o Diabo como principal motivo do fracasso humano. O fato é que esses olhares acabam reduzindo a condição humana a uma forma muito simplista. O que dizer, por exemplo, para um pai que perde seu filho por uma bala perdida? O que pensar quando famílias são vítimas da violência doméstica? Como encarar o suicídio? Por que pessoas se escravizam cada vez mais nas drogas?

O pior é quando se confronta essa realidade com o tipo de cristianismo compreendido pelas pessoas. Lembro-me do começo de meu ministério, quando ministrava um estudo para alguns jovens. Mencionei que em um determinado país da África, muitos estavam passando fome, inclusive cristãos evangélicos. Mal acabei de falar e uma jovem fez um questionamento dizendo: “Então essas pessoas não são convertidas, pois um crente não passa fome.” O interessante é que essa jovem era uma estudante universitária, com uma vida estável, tinha um carro novo que seu pai havia lhe dado para ela não se estressar em andar a pé ou de ônibus até a faculdade. Exemplos assim, infelizmente, são muito comuns. Para alguns a “bênção” de Deus, para outros a falta de fé! Ainda há aqueles e aquelas que acreditam que algumas tragédias da natureza são conseqüências da idolatria de determinadas religiões. Chegam afirmar que é o cumprimento da “palavra” de Deus.

Sou um apaixonado pela Bíblia, mas tenho pavor de interpretações fundamentalistas, alienadas e desconexas da condição humana. Além da Bíblia, a partir de uma interpretação mais livre e voltada para o humano, vejo o pulsar da vida na literatura. Como não inquietar as ‘entranhas da alma’ ao ler “Memórias do Subsolo”? Como não chorar diante da dor e da beleza em “Os irmãos Karamazov”? Como não pensar na ‘pureza’, ou na coragem de viver em “O Idiota”? (Obras de Dostoievski). Como não sentir a dor da solidão ao ler “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques? O final dessa obra me confronta: “ ...porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.” Como não pensar na vida, no cotidiano de milhões de pessoas que passarão sem uma segunda oportunidade sobre a terra? Garcia Marques me faz lembrar uma música dos Titãs, chamada Marvin. A música aborda o triste fim de um pai de família, que antes de morrer diz ao filho: “Marvin, agora é só você, eu fiz o meu melhor, e o seu destino eu sei de cor... Marvin, agora é pra valer, chorar só vai lhe fazer sofrer...”

Para que eu não seja compreendido como um herege ou um pessimista, o livro do Eclesiastes pode me ajudar: “Vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os console; o poder está do lado dos seus opressores, e não há quem os console.” ( Ec 4:1); “ Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos.”( Ec. 9:11)

Talvez uma pergunta passe na cabeça de muitos. Como fazer para mudar isso? Quais os passos necessários? Eu diria que não há passos, pois o que a vida nos ensina é exatamente o contrário. A vida é avessa a fórmulas lógicas e cartesianas, a ‘receitas’ de auto-ajuda, a qualquer triunfalismo evangélico. Vida é apenas vida! “Para contar os dias, basta um dia ao homem para conhecer toda a felicidade.” (Dostoievski). Para viver bem, é preciso saber viver. Ter vida plena em Jesus não é viver sem problemas ou nunca ter crises, mas é aprender a amar a vida como ela é e perceber na condição humana, com o trágico e o belo, a Imagem de Deus. Somente nessa percepção é que nos tornamos mais humanos. “ ...se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto.” ( Jo 12:24)

Creio que seria um bom começo...


Claudinei Fernandes

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Um Pouco de Leveza

Há alguns dias atrás fui “intimado” pelo médico a emagrecer. O exame que fiz acusou uma alteração no fígado (excesso de gordura), o que me “obriga” a perder por volta de vinte quilos. Ao ouvir o diagnóstico, pensei no ‘peso’ das suas palavras que imediatamente causou-me um ‘peso’ no coração e na consciência. Ao mesmo tempo comecei a pensar como deixamos a vida ‘pesada’, não somente pelo excesso de ‘peso’ do corpo, mas pelo ‘peso’ que lançamos sobre ela (vida). Não pude deixar de refletir o quanto é necessário um pouco de leveza!

Diariamente busco meus filhos na escola. Primeiro pego o Júnior em uma escola de educação infantil e em seguida busco o Abner em outra escola, de ensino fundamental. Ambas são escolas municipais. Os assuntos com eles são diversificados, mas quase sempre se repetem: o gol sofrido na hora do recreio, as brincadeiras, as novas descobertas em sala de aula, uma fofoquinha sobre os amigos, o humor dos professores etc.

É muito interessante observar todas as crianças na saída. Eu não sei se a alegria é a mesma ao entrar e iniciar a aula, mas é bem perceptível e até estampado nos olhinhos infantis a alegria de voltar para casa. Há aquelas crianças, cuja situação social é bem precária, que usam chinelos de dedo e roupas bem ‘batidas’, mas apesar disso, não sorriem menos que as outras. Há também aquelas que são recebidas pelo pai ou pela mãe logo ao sair pelo portão. Nos poucos momentos que observo as crianças na saída da escola, sinto o quanto é bom participar deles. Parece que a vida fica mais leve com as crianças, talvez porque elas ‘têm cheiro de Deus’.

Assim também é na igreja. Como as crianças alegram o ambiente! É claro que às vezes são bem agitadas, mas é lindo vê-las se desenvolvendo. Com criança a gente conversa muita coisa, de dinossauros a oração. Outro dia, brincando de futebol com o Juninho, ele tomava gol de propósito só para comemorar comigo. O pior é que ele fazia questão de perder para comemorar minha vitória. Que coisa fantástica! Quem gosta de perder para comemorar com seu “adversário”? Somente quem prefere a alegria do abraço ao invés do sabor da conquista. Atitudes assim são capazes de ‘tornar leve’ um mundo tão competitivo e de sentimentos religiosos tão triunfalistas. Talvez o que todos precisamos é um pouco de leveza. Que tal aprendermos com as crianças?!

Claudinei Fernandes

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

“Brasil Muçulmano” ou desencanto do cristianismo?

"Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus." (Fp 2:5)

Um artigo publicado no informativo batista, veículo de comunicação via internet em 10/10/2009, traz o seguinte título: “Brasil muçulmano?” Segundo informações deste artigo, o Brasil tem sido recentemente, talvez pelo seu destaque no cenário mundial, palco de encontros e diálogos de líderes muçulmanos, cujo objetivo é discutir e planejar seu avanço na América do Sul.

Não sou um entendido do Islã, mas sei que ele também tem uma perspectiva de conquista, assim como o cristianismo. Em relação a isso, muito se assemelham. Não sei se é necessário haver uma forte preocupação com o avanço do Islamismo em si no Brasil, mas com certeza é preciso haver uma preocupação com a Igreja. Quem sabe começar analisando se ela (igreja) tem sido realmente aquilo que Jesus propôs. A história mostra que todas as vezes que esse ‘espírito de guerra’ entre essas religiões se manteve, só houve perdas. Ao invés de pensar e analisar de forma apologética (defesa da fé), a Igreja deve pensar simplesmente o que significa ser Igreja e qual seu papel no mundo. A Ênfase de Jesus nos evangelhos sempre foi o amor, compaixão e justiça. Não deveria ser esta a ênfase de todo o cristianismo?

Se o cristianismo (católico, ortodoxo ou protestante) não atender a necessidade das pessoas, elas simplesmente se abrirão para novas perspectivas religiosas. Isso não diz respeito apenas ao islamismo, mas a qualquer religião. A cultura evangélica no Brasil, por exemplo, é anti-católica e em geral fechada a qualquer diálogo ecumênico, o que mostra uma forte insensibilidade antropológica. Tem o hábito de demonizar tudo aquilo que é contrário a sua ‘são doutrina’.

A meu ver a liberdade religiosa no Brasil é muito mais benéfica do que perigosa, mesmo dando abertura a outras religiões. Acredito até que propicie a grande oportunidade de mostrar o quanto o evangelho tem a contribuir de forma significativa em todas as esferas da vida. O quanto é possível construir um humano melhor a partir de ações concretas de amor e compaixão, de compreensão do outro, priorizando pessoas e tratando-as com dignidade. Parafraseando Leonardo Boff: “Só pode haver o ‘Pai nosso’ se houver o ‘Pão nosso’”. Se a forma de viver e entender o evangelho se der a partir de Jesus, de sua vida, de sua humanidade e da forma como ele lidava com as pessoas e as ensinava, nenhuma ação externa se tornará uma ameaça.

Infelizmente a cultura ocidental, profundamente influenciada pelo cristianismo, tem gerado muitas desigualdades sociais. Tem sido a grande portadora de um sistema econômico monstruoso que gera riquezas para poucos e conseqüentemente pobreza e miséria para muitos. Afirma ainda que isso é sinônimo de liberdade. Além deste cenário, há a grande participação na destruição do meio ambiente em nome do progresso (ou da ganância). A conseqüência destes acontecimentos causa o que Max Weber chamou de ‘desencanto’. Apesar de estar se referindo ao final do Séc.XIX e começo do Séc.XX, em relação ao desencanto com a religião e, portanto uma aproximação com o secularismo, não é diferente em nossos dias e em nosso país, só que ao invés do secularismo, a aproximação tem sido com outros horizontes religiosos. Tudo isso acaba gerando um terreno fértil para novas religiões, que se transformam em novas alternativas em meio a tantas desilusões.

Não será - assim como nunca foi - ações do tipo ‘guerra santa’ ao estilo Bush, com um fundamentalismo cristão tão estridente quanto ao do próprio Islamismo que impedirá qualquer “ameaça” religiosa. Não se deve pensar em ‘novas cruzadas’ e nem tampouco em ‘repreender o inimigo’, mas em refletir naquilo que realmente queremos ser enquanto Igreja.

Que Deus tenha misericórdia de nós!

Pr. Claudinei Fernandes

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um Grito Hermenêutico: O Grande Desafio Pastoral de Nossos Dias.

...mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. ( Mt 23:23b)
Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo. (Rm 14:17)
Estes dois textos retratam o pensamento teológico da Comunidade de Mateus e de Paulo. Ambos apontam elementos concretos na construção de suas ideias. Mateus descreve o assertivo discurso de Jesus dirigido aos fariseus, no qual apresenta os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. A linguagem teológica dessa comunidade é construída a partir da interpretação da Lei, isto é, da interpretação de Jesus ou da compreensão daquela comunidade sobre Jesus em relação à Lei. “Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir.” (Mt 5:17).
Paulo, na epístola aos Romanos, está lidando com um conflito no qual também envolve a interpretação da Lei. Está ensinando àquela comunidade que o Reino de Deus não consiste em comida (alimentos permitidos ou não permitidos), nem em observar ou não supostos dias sagrados. Diante desse emaranhado de costumes e tradições judaicas, tenta mostrar que não há relação entre essas tradições e o Reino de Deus, pelo contrário, destaca que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo.
Os dois momentos refletem a grande distância que havia entre essas respectivas concepções da Lei em relação aos preceitos mais importantes e entre o Reino de Deus. É sempre mais fácil apelar para o rito e a forma, culto e liturgia, que são muito mais subjetivos e abstratos do que para ações concretas e humanas de serviço. Mateus parece evidenciar de forma externa, ou seja, ações que tenha o outro como alvo. Por isso, justiça, misericórdia e fidelidade. Paulo, entretanto, parece ter uma ênfase muito mais interna, uma transformação para dentro, onde cada pessoa experimenta de forma pessoal justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Essas esferas se dão tanto no público quanto no privado (coletivo e individual).
Nossa forma de pensar Igreja ainda se distancia dessas prerrogativas de Reino de Deus. É possível perceber isso em todos os seguimentos evangélicos, sejam eles: históricos, pentecostais e neopentecostais. Justiça, misericórdia, fidelidade ou justiça, paz e alegria no Espírito Santo foram trocadas por programações eclesiásticas e denominacionais, campanhas, shows, mercado, comércio e mídia. Não dá para comparar esses textos bíblicos com a atual forma de interpretação de Igreja e até mesmo de Reino de Deus.
De um lado há o excessivo apelo à prosperidade e cura pelos neopentecostais. Vale mencionar o nascimento constante de possíveis “impérios” religiosos que concorrem entre si e têm um forte poder de Marketing. O carisma de líderes que conseguem sem o menor pudor hermenêutico convencer e agregar pessoas se fazendo ‘ungidos’ inquestionáveis de Deus. De outro lado há o pragmatismo eclesiástico que reduz essa perspectiva de Reino de Deus em campanhas evangelísticas e declarações públicas (fundamentalistas) de doutrinas, onde uma pessoa simplesmente atende a um apelo e se torna um “crente”. Aprende a orar, ler a Bíblia, ir ao culto dominicalmente, contribuir com missões e é claro, ser dizimista. Não quero com isto comparar um lado com o outro, apenas apontar ênfases, que certas ou erradas, merecem destaque.
Será isso que os textos mencionados estão se referindo? Será que nossa teologia de missões está sendo pensada sobre um viés teológico concreto e humano? Será que nosso discurso realmente é bíblico?
Não tenho a intenção de desmerecer o esforço e a boa intenção de ninguém, apenas convidar para uma reflexão hermenêutica. Não seria o momento de buscarmos uma teologia bíblica mais madura e relevante? Talvez esse seja o grande desafio pastoral de nossos dias.
Pr. Claudinei Fernandes

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Quebra de paradigmas ou ausência de vida: Desafios da família e da igreja

Sermão pregado no dia 30 de maio de 2009 na Segunda Igreja Batista de Jacupiranga.

Texto: Jo 9: 1-34

Tema: Quebra de paradigmas ou ausência de vida: Desafios da família e da igreja.


Hoje nós estamos encerrando uma série de mensagem sobre a família e, nesta última mensagem vamos pensar sobre a necessidade de quebrarmos paradigmas. Paradigmas são conceitos ou modelo que adotamos, acreditamos e nos guiamos por ele. Incutimos que aquele jeito é o único jeito ou o jeito correto de viver, fazer e pensar. Temos que construir nossos paradigmas à luz de Jesus. Tanto a família, quanto a igreja, quanto toda sociedade são regidas por paradigmas.Este texto narra um milagre que trouxe uma grande polêmica no meio daquelas pessoas. Ao olharmos o texto num primeiro momento, parece não ser perceptível o motivo de tanta polêmica ou de tanto conflito. Ou se percebemos, não entendemos. O fato é que havia um cego de nascença que Jesus curou. O problema era a compreensão ou a explicação que alguns tinham sobre um cego de nascença. Para muitos um homem nascia cego devido ao pecado dos pais ou até mesmo por causa de uma espécie de destino. E na tradição do ‘talmud’, não existia cura para um cego de nascença, pois somente o messias poderia fazer isto. (v.32) Ninguém jamais ouviu que os olhos de um cego de nascença tivessem sido abertos. Este cego também era mendigo (v.8), era conhecido de seus vizinhos e tinha uma família, seus pais eram vivos. (v.20). Ele tinha um círculo social, tinha relações humanas. Era alguém vítima de uma cultura que o excluía pelo fato de ser cego e pelas causas que atribuíam a esta cegueira. Jesus menciona outro tipo de cegueira no texto. (V.39). Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos. Estava se referindo a uma cegueira tão cruel ou até pior que a cegueira física. A cegueira para a vida, para o humano, para Deus. No texto há uma forte relação com a família, como em toda a cultura judaica. Diante disto vamos pensar alguns princípios importantes nesta relação familiar e na relação com Deus.

1. Uma compreensão que aprisiona

Na vida há algumas compreensões ou pelo menos tentativas de explicar as contingências da vida. Destaco aqui, de forma bem simples, que na teologia e na filosofia, contingência significa que a vida está sujeita a todas as possibilidades de alegria, de dor, de sofrimento, de relacionamentos, de sentimentos, etc. Todos estão sujeitos a isto. Inclusive aqueles que são fiéis a Deus. Não se trata de destino, de vontade de Deus, de pecado, mas de contingência, ou seja, de existência. O viver é assim. Os discípulos de Jesus eram influenciados por uma teologia de causa e efeito. Do tipo: ‘Está sofrendo porque fez alguma coisa, porque cometeu algum pecado.’ Seus discípulos lhe perguntaram: “Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que ele nascesse cego?”(v.2) Esta forma de pensar era comum naqueles dias, aliás, o Livro de Jó mostra isto muito bem, quando os amigos de Jó tentam convencê-lo de que aquele sofrimento era uma conseqüência de pecado. Uma tentativa de explicar algo, que na verdade não era daquela forma. No texto lido, os discípulos compreendiam a dor a partir da culpa. Inclusive mencionam a possibilidade de que o homem cego sofria por causa dos pais. Era uma compreensão cruel e desumana. Esta compreensão é muito mais comum do que a gente possa imaginar. Inclusive dentro de casa. Há muitas pessoas que não conseguem se relacionar bem, que não conseguem dialogar porque as situações não estão como gostariam que estivesse. É mais fácil compreender a partir da culpa. “Quem é o culpado por isto?” Infelizmente isto é muito comum entre famílias. Filhos que culpam pais por não darem os que eles gostariam de receber. Pais que culpam os filhos por impedirem a realização de seus sonhos. Mulheres que culpam seus filhos por “estragarem” seu lindo ‘corpinho’. Este é um tipo de compreensão de vida e de fé que só aprisiona, só faz mal.

2. A difícil tarefa de se libertar desta compreensão

Não é algo simples se libertar desta forma de compreensão. Porém é necessário para quem deseja viver bem. (v.3) “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele.” Jesus está confrontando o pensamento, a compreensão de ‘causa e efeito’. Ele não está dizendo que foi Deus que fez aquela doença para que a obra de Deus se manifestasse na vida do cego. Ele está dizendo que aquela situação que estavam vivendo naquele momento iria proporcionar a manifestação da obra de Deus na vida do cego. A cura deste homem representaria muito mais que um milagre, mas a quebra de uma compreensão teológica. Haveria um corte em tudo aquilo que eles compreendiam até então. Por isto há toda uma confusão em torno desta cura. Era Sábado. Não era permitido a realização de nenhum ato no Sábado, mas Jesus ignora isto. Cego de nascença era sinônimo de maldição, mas Jesus ignora isto e abençoa o cego. Até os pais daquele rapaz tinham esta compreensão. O homem era cego, mendigo, motivo de especulações religiosas, considerado um amaldiçoado. Ainda por cima era Sábado. Jesus passa por cima de tudo isto! A confusão então se arma! Como é difícil as pessoas mudarem a forma de compreender a vida ou até mesmo a forma de pensar sobre Deus! Isto acontece também entre famílias. A maneira de compreender a vida, a opinião de um pai, que se sempre aprendeu assim, que sempre viveu assim, muitas vezes é como se fosse a única forma de pensar. Às vezes um filho que tem algum tipo de deficiência ou alguém da família que sofre e toda a família tenta buscar explicações, os ‘por quês’. O que precisamos entender é que a vida tem que ter o máximo de dignidade possível e nem sempre explicações são possíveis. Nem todos os cegos de nascença foram curados por Jesus, mas este foi. Jesus mostrou ali que a dignidade humana é algo que Deus valoriza. Não podemos ver a vida como uma conseqüência de causa e efeito (aconteceu porque pecou ou não deveria acontecer porque é fiel). Deus sofre o mal conosco, sofreu na cruz. Ele não tirou o mal do mundo, mas sofreu a tragicidade humana, o mal conosco na cruz. Conforme já afirmei algumas vezes aqui, somos pessoas que estamos em construção e só há um meio de nos construirmos de forma saudável: através do amor e da compaixão. O que vence as culpas, a indiferença, a dor e o medo é o amor. O amor não garante que tudo vai sair do jeito que desejamos ou planejamos, mas garante que vale a pena estar junto, lutar pelo outro. Jesus curou o cego, mas não conseguiu tirar a cegueira no coração daqueles homens.(v.21) Idade ele tem perguntem a ele. (v.22) Seus pais disseram isso porque tinham medo dos judeus, pois estes já haviam decidido que, se alguém confessasse que Jesus era o Cristo, seria expulso da sinagoga. Ser expulso da Sinagoga significava mais para aqueles pais do que celebrar com o filho o milagre alcançado. É compreensivo até certo ponto, pois expulsão de uma sinagoga era algo muito forte naquela cultura, mas a indiferença diante da cura do filho é de assustar! Quantas pessoas, assim como aquele cego, vivem atormentadas no meio da família achando que foram esquecidas? Esta semana (no noticiário) um casal que havia adotado uma menina de oito anos, resolveu devolvê-la. O caso está na justiça. Como fica o coração de uma criança que já se sentia excluída, agora se sentindo rejeitada duas vezes? Como pessoas compreendem a vida desta forma? Se não servir a gente devolve. Se não der certo a gente separa. Que compreensão de vida é esta? (v.24) Para a glória de Deus diga a verdade. Sabemos que esse homem é pecador. Oprimiam para “a glória de Deus”. Há pessoas que fazem tantas coisas em nome de Deus! Quando na verdade há muito pouco ou quase nada de Deus em seus atos. Deus não é glorificado na inveja, na crueldade, na arrogância, no orgulho, no desprezo. O problema para os judeus não era a dor do cego, mas a dignidade que Jesus deu a ele. Os líderes judeus não aceitavam isto. A vida não valia para eles, o que valia era a tradição, ou o poder que eles não tinham.

3. A simplicidade e a ousadia de quem sabe o que está falando

...Uma coisa eu sei: eu era cego e agora vejo. (v.25). O cego compartilha aquilo que havia acontecido em sua vida. Ele não estava preocupado com a opinião dos religiosos acerca de Jesus. Ele deixou de ser uma vítima, sua vida havia tido uma forte transformação. Há muitas pessoas que gostam de ser vítimas. Não assumem uma nova posição na vida, ficam se arrastando. Foi curado, foi liberto, mas também passou a ver que Jesus é diferente daquelas pessoas que nunca fizeram nada por ele. Era um filho que provavelmente não tinha voz ativa. Agora ele tem voz, ele já não é mais o mesmo. Apesar o medo dos pais, ele não se prendeu a Isto. Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos.(v.39).Jesus está fazendo um trocadilho de palavras. Ele está falando que aos que são cegos, sem visão, sem perspectivas, sem sonhos, sem salvação, sem alegria, estes terão os olhos abertos. Mas àqueles que acham que porque são religiosos, que acreditam que são superiores, que não servem, apenas querem ser servidos, estes se tornarão cegos. Nós somos discípulos de Moisés. (v.28). Este homem experimenta uma transformação impressionante. Passa a enxergar, se sente bem, com dignidade, recupera a auto estima (pois se afirma diante dos religiosos). Ele foi profundamente impactado por Jesus, sem ainda ter entendido direito. Há lares onde necessitam de uma transformação tão impactante quanto a deste ex cego. Precisam recuperar a dignidade (casais, relação de pais e filhos etc). Precisam recuperar a auto estima para que pessoas voltem a acreditar em si mesmas, em seu próprio valor. Isto o deu força para superar a forma que com que foi tratado. Você nasceu cheio de pecado; como tem ousadia de nos ensinar. E o expulsaram. (v.34). Aqueles homens olhavam para ele como alguém cheio de pecados. Foi discriminado e expulso da presença deles, mesmo mostrando todas as evidências de sua cura.(v.35) Jesus ao ouvir que ele tinha sido expulso, encontrando-o... Jesus não se ocultou diante da acepção e discriminação daquele homem. Há tantos lares que ocultam coisas. Ocultam sentimentos, ocultam valores. Há tantas pessoas que ocultam e se isentam na vida dos outros e até de si mesmos. No reino de Deus não podemos nos ocultar.

Conclusão:

Quebra de paradigmas ou ausência de vida: Desafios da família e da igreja.

1. Uma compreensão que aprisiona
2. A difícil tarefa de se libertar desta compreensão
3. A simplicidade e a ousadia de quem sabe o que está falando

terça-feira, 17 de março de 2009

ERASMO, O HUMANISMO E A REFORMA:

ERASMO, O HUMANISMO E A REFORMA:
CONSIDERAÇÕES QUANTO A UM REFORMADOR ESQUECIDO[1]


Claudinei Fernandes Paulino da Silva
Kleiton Cerqueira. de Almeida



RESUMO



O presente artigo procura, a partir da pesquisa bibliográfica em torno do pensamento de Erasmo de Roterdam, situar no contexto entre fins do século XV e início do século XVI, onde se insere, portanto, a Reforma Protestante e o Movimento Humanista, o caráter peculiar do pensamento daquele que foi talvez o maior humanista de todos os tempos. Personagem mais influente e prestigiado de sua época, aclamado por alguns como o primeiro grande homem moderno e precursor do Iluminismo, Desidério Erasmo era um intelectual que procurava levar a cabo uma reforma na prática moral da Igreja de traços medievais. Defrontou-se diretamente com os intentos de Lutero, a quem considerava intempestivo e, até certo ponto, tomado por fanatismo. Acabou sendo sobrepujado por este e por aqueles que seguiram à Reforma oficialmente por Lutero iniciada.





1. APONTAMENTOS BIOGRÁFICOS A MODO DE INTRODUÇÃO


Erasmo nasceu em Rotterdam, em 28 de outubro de 1469[2]. Filho bastardo de Roger Geert[3], clérigo com funções itinerantes nas paróquias da cidade de Gouda, próxima a Rotterdam, e Margared ou Marguerite. Recebendo o nome de Erasmo, santo muito popular nos Países Baixos, seguido pelo sobrenome Rogerii, por fim conhecido como Desiderius Erasmus, confirmado na segunda edição dos “Adágios” e que tem por tradução “o desejado amável”, sobre o qual conta-se relacionar a frase sarcástica circulante no século XVI por parte dos simpatizantes da Reforma: “Quaeritur unde tibi sit nomem Erasmus? Eras mus.” (Indaga-se de onde tiraste o nome Erasmo? Eras rato.”)[4].

Iniciado na vida escolar na cidade de Gouda, seguiu para os estabelecimentos dos “Irmãos da Vida em Comum”, em Deventer, e, por fim, para a ordem agostiniana em Steyn, dos estudos os quais derivou sua ordenação em 1492.

Como clérigo, tornou-se secretário do bispo de Cambrai, podendo assim “liberta-se dos horizontes limitados do mosteiro de Steyn e tomar contato com o mundo”[5]. Com efeito, delegado por tal, seguiu para Paris, a fim de obter o grau de doutor em teologia. Ali estudou amplamente o latim e conheceu Robert Gaguin e Faustus Andrelinus, mestres do humanismo florescente.

Posteriormente, a partir de suas aulas particulares e dos contatos pessoais advindos delas, chegou à Inglaterra, encontrando uma atmosfera agradável para seus anseios humanistas e interesses intelectuais. Na Inglaterra conheceu Thomas Morus, autor de “A Utopia” e futuro homenageado do “O Elogio da Loucura”. Ali aprofundou seu conhecimento do grego, que resultou na tradução do Novo Testamento, acompanhada de comentários críticos e publicada em 1516. Trabalhava agora com perícia os dois idiomas fundamentais aos humanistas, o grego e o latim.

Depois de uma estadia como estagiário na Itália, um antigo sonho, comum talvez a todos os humanistas de então, retornou à Inglaterra, período de escrita de “O Elogio da Loucura” em homenagem a seu anfitrião Thomas Morus. Fez uma série de outras viagens, morreu em Basiléia, cidade para onde retornou depois de estar em Friburgo. Era 12 e julho de 1536.


2. O HUMANISMO


A Europa medieval experimentava mudanças que progressivamente acabaram transformando todo um panorama até então construído. Uma nova forma de pensar emergia aos poucos, e o centro deste pensamento era o homem. De acordo com Pierre Chaunu, este desenvolvimento recebeu o nome de “studia humanitatis”, que tem a tendência de dominar toda a atividade do espírito, conhecida também como humanismo. Chaunu ainda destaca que a característica mais importante é que todo o trabalho humanista passou a estar “nas mãos de um pessoal novo” (termo usado por ele) e não mais nas mãos dos doutores da universidade, fazendo menção a Escolástica.[6] A partir do Século XIII, a lógica se tornou o mais importante elemento no exercício do comentário, caracterizada como soberana, a “arts artium”.[7]

Mas estas transformações já são sinalizadas desde a Renascença, portanto um fenômeno italiano. Segundo Daniel Rops “enquanto todo o resto do Ocidente era ainda teatro da agonia da civilização medieval, em Florença, em Siena, em Veneza e em Roma operava-se já um novo nascimento.” [8] A febre pelo conhecimento dos antigos humanistas encorajava cada vez mais a paixão pelas ciências. Rops cita um preceito de Terêncio: “Sou homem, e nada de humano me é estranho”.[9] Não somente o homem é pensado, mas também o conhecimento do mundo, um conhecimento crítico. Leonardo da Vinci procurava surpreender o sentido da matemática do mundo, sonhava em como fazer o homem voar à semelhança dos pássaros e substituir o trabalhador pela máquina, e recebeu autorização para dissecar cadáveres. Maurolycus de Mesina cria a óptica e demonstra que o cristalino do olho é uma lente, além dos primeiros princípios das ciências naturais, estudado por Giambattista della Porta.[10]

Em Florença ecoa a voz profética de Savonarola que é calada pela fogueira, mas que prenuncia outros profetas. Além do florescimento artístico, a Renascença também encontra um ponto de partida no gosto pela literatura antiga.[11] O grego passa a ter um valor muito mais forte que o latim, a ponto de as próprias mulheres, afirma Rops, participarem desta moda erudita. “Cecília de Gonzaga, aos oito anos, conjugava todos os verbos gregos, e Beatriz de Este, aos quinze, notabilizava-se na poesia latina e grega.” [12] Esse conhecimento das letras clássicas seria norma a partir dali a toda cultura humana.

Cícero, falando da herança helênica, chamara-lhe humanitas, Leonardo Bruni aplicou o termo tanto ao acervo de Roma como ao da Grécia. Assim, o qualitativo humanus, que em latim significa ao mesmo tempo “culto”, “polido” e muitas outras coisas, veio a designar o próprio conjunto do movimento que esse regresso às línguas antigas parecia ter desencadeado.[13]

Em 1509, o humanismo teve sérios confrontos com a escolástica. Para Chaunu a universidade escolástica comprometeu-se com a pretensão conciliar ao governo permanente da igreja.[14] O espírito da época já não assimilava mais viver sob a tutela da igreja e um grito de liberdade tornara-se inevitável. Nos Séculos XV e XVI, alguns acontecimentos importantíssimos ocorreram: O comércio mercantil ganhou forças, o feudalismo se enfraquecia cada vez mais, a necessidade da leitura, da escrita e do cálculo, essenciais ao comércio e de outros conhecimentos práticos conduzia as modificações no plano educacional.[15] A imprensa catalisava a difusão da cultura, a pólvora derrubava definitivamente a hegemonia das fortalezas feudais, a evolução do transporte marítimo permitiu o maior contato com outras culturas, uma nova visão de mundo foi construída a partir da teoria heliocêntrica de Copérnico. A burguesia se dividia com o tempo em alta burguesia - banqueiros e baixa burguesia - comerciantes e artesãos e consolidação de estados nacionais.
Diante destes acontecimentos o poder da igreja diminui e sua voz então é confrontada com a voz da liberdade humana. As interpretações passam a ter como referencial a razão e não mais a autoridade eclesiástica. A corrupção do clero vem a ser outro fator determinante que contribui para a busca de uma Reforma, que seria apenas uma questão de tempo.

Augustin Renaudet faz distinção entre humanismo entusiasta e humanismo crítico. O humanismo entusiasta ligava a Antiguidade latina com a ficção medieval, enquanto que o humanismo crítico separava a verdadeira Antiguidade das interpolações tardias.[16] Alguns nomes importantes merecem evidência no humanismo: Lorenzo Valla, que causa grande admiração a Erasmo, outro nome de profunda importância, talvez o grande vulto deste momento. Erasmo de Rotterdam é considerado para muitos historiadores o mentor intelectual da Reforma Protestante. “Erasmo botou o ovo e Lutero chocou.”[17]


3. ERASMO E A REFORMA PROTESTANTE

A Reforma protestante sofre uma grande influência do humanismo. A forma de interpretar as escrituras, onde a razão é utilizada e não a autoridade clerical, por exemplo, além das traduções para a língua do vernáculo. A Reforma se mostra aberta às novas idéias e com o fortalecimento das Nações Estados, do comércio e da imprensa, o protestantismo se torna uma opção não só religiosa, mas para muitos a possibilidade de uma vida livre da tutela de Roma. Diante desta relação entre humanismo e Reforma, merecem destaque dois nomes proeminentes: Erasmo e Lutero.

Erasmo, conforme já mencionado, é considerado o mentor intelectual da Reforma, embora nunca rompesse com a igreja oficial. Lutero, por usa vez, questiona a Igreja, confronta de forma teológica o comportamento institucional, como as indulgências, além de enfatizar a graça, a fé, como elementos centrais de ligação entre o homem e Deus, o que acaba com a necessidade do intermédio da instituição para salvação. Como conseqüência a classe eclesiástica perde o status de “razão de ser”, e com ela a igreja também. Em Lutero há uma ruptura com a igreja oficial.

A vida humana para Erasmo é compreendida como uma cooperação do homem com Deus. Para ele o homem não é mal por natureza, contrapondo aqui a afirmação teológica dos reformadores da natureza corrompida pelo pecado original, uma visão pessimista. Os elementos bíblicos e evangélicos, junto com a graça, permitem ao homem aspirar a salvação, para o que é necessário o uso da liberdade.

Entre os humanistas e reformadores há alguns pontos de contato, porém notáveis diferenças também. Entre pontos de concordância, destacam-se o ataque que ambos fazem a teologia oficial e aos representantes da Igreja, a afirmação do papel central do homem no universo e o interesse despertado pelo tema da liberdade do homem. Sobre as diferenças, pode-se destacar que os humanistas salientam a bondade natural do homem enquanto os reformadores a negam. Para os reformadores o ser humano é mal por natureza e carece de liberdade, enquanto que o humanismo nega isto.

O humanismo faz do homem, um homem livre e crítico, capaz de pensar e agir sem a tirania de um poder eclesiástico medieval, que tem papel vital para a Reforma e abre caminho para a modernidade.

Especificamente tratando-se de Erasmo, pode-se dizer que este foi um intelectual humanista que procurou levar a cabo uma reforma na prática moral da Igreja de sua época: Erasmo tinha um plano próprio de reforma. Já em 1501, tinha publicado Enchiridion militis Christiani (Manual do Cristão Militante) no qual levantava fortes críticas a um cristianismo de baixa moralidade e caráter. Ali Erasmo pregava uma “religião interiorizada e humanizada”, vivida na prática “sem os excessos místicos de boa parte da Idade Média e também sem o racionalismo estéril do formalismo escolástico” [18]. O “Elogio da Loucura” segue, por assim dizer, um caminho parecido, onde, indiretamente, Erasmo tece críticas vigorosas a sociedade a ele contemporânea. Entre tais críticas, encontra-se a denúncia das nulidades presentes nas preocupações escolásticas, presas a questões insolúveis e distantes da situação existencial humana; a denúncia da indolência dos padres e sacerdotes, mais interessados na satisfação de seus deleites materiais do que na preservação da moral convalescente; e também a denúncia à religiosidade popular, satisfeita em ter suas superstições alimentadas a ter que mover-se de seu comodismo existencial. Outras críticas, não diretamente relacionadas à religiosidade medieval, completam o enredo de Moriae Encomium, todas elas direta ou indiretamente relacionadas à moral e as posturas humanas em meio à sociedade.

Erasmo escreveu outros inúmeros textos em relação ao cristianismo, a religiosidade e a Igreja de seus dias. Conta-se assim a mais antiga obra do autor, Antibarbarorum líber (1494), um panfleto revolucionário, sobre o qual recomendou-se a Erasmo a não publicação, tendo em vista sua violenta crítica contra os monges e teólogos[19]. Destaca-se também “Os Colóquios”[20], uma série de diálogos onde Erasmo ridiculariza, dentre outras coisas, as superstições populares promovidas pela Igreja, e “Consertando a paz da Igreja”, caracterizado por muitos como os pensamentos mais maduros do autor a respeito da Igreja. Acrescentam-se ainda os trabalhos de Erasmo como tradutor e comentarista de textos bíblicos: sua tradução acompanhada de comentário crítico do Novo Testamento se tornou um marco da análise literária da bíblia. Grande parte das críticas dos reformadores levadas a cabo contra a Igreja, foram por Erasmo precedidas, como trata de reconhecer o próprio Lutero em cartas escritas a Erasmo.

Seu contanto inicial com Lutero, jovem frade sobre o qual tem notícias de lhe ser até então um profundo admirador, remonta a uma carta escrita por Spalatinus, secretário do embaixador da Saxônia. Já por meio desta toma conhecimento da discordância de Lutero quanto à sua concepção do pecado original. A diferença entre ambos pensadores resultaria por fim nas obras “Sobre o Livre-Arbítrio” (1524) e “Do Servo Arbítrio” escritas por Erasmo e Lutero, respectivamente, em oposição um ao outro.

Erasmo não aderiu ao partido da Reforma. Recusou também um bispado, lhe oferecido desde que aderisse ao partido da Igreja Católica. Na verdade tinha seu próprio partido, caracterizado por um otimismo quanto à humanidade. Pensava que por influência da educação humanista, baseada no estudo das letras clássicas, a civilização atingiria um alto grau moral, fundado sobre a liberdade de pensamento e a solidariedade e fraternidade universal. Isto é o que se observa desde sua obra “Manual do Cristão Militante”. “Sua religião era a Humanidade, o amor ao gênero humano inteiro, acima da diferença de línguas, credos e filosofias”[21]. Em relação a isto e que se diz que Lutero tenha dito de Erasmo: “as coisas deste mundo têm, para Erasmo, maior importância do que as divinas”[22]. Com efeito, enquanto para o ex-monge de Wittenberg, “o essencial na Terra era o divino e o celeste, para Erasmo, ao contrário, como cidadão do mundo, apresentavam como primazia o humano e o terrestre”[23].

Foi, por fim, atacado por ambos os lados, os reformadores e católicos, e ainda pelos próprios humanistas, dado o seu posicionamento crítico entre os mesmos, que constantemente apresentavam-se excessivamente servis ante a antiguidade. Quanto a Lutero aplica-se a ele a seguinte afirmação: “vêde [sic] quanto veneno encerram os Colóquios de Erasmo! Em meu leito de morte exortarei meus filhos a não lê-los”, e ainda, “em meu testamento determino-vos a odiar e detestar essa víbora, chamada Erasmo de Roterdão, o maior celerado que jamais pisou a Terra, o mais encarniçado inimigo de Cristo”. Por parte da ala católica, Beda dizia, referindo-se a Erasmo: “Se me dessem crédito, era só através do fogo que se haveria de agir contra gente dessa espécie”[24]. A animosidade contra Erasmo por parte dos católicos observa-se até no século XVII, como se pode ver desde os sermões de Vieira: “e ainda não tinham saído do Inferno os Erasmos, os Luteros, os Calvinos e tantos outros monstros, em cujas heresias está ardendo hoje a França, a Holanda, a Inglaterra [...]”[25].

Pacifista, Erasmo via em Lutero muitas vezes um fanático. Ansiando por uma reforma não queria, entretanto, divisão. Sendo pacifista não queria a guerra. Focalizava sua reforma mais sobre o problema moral do que o doutrinário. Parecia estar certo ao repudiar as tendências de violência presentes na reforma, como pode ser notado desde a Guerra dos Camponeses e a Guerra dos Trinta Anos.


4. O ELOGIO DA LOUCURA: A MAGNA OBRA DE ERASMO

[...] esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais [...] Ireis, pois, ouvir o elogio, não de um Hércules ou de um Sólon, mas de mim mesma, isto é, da Loucura. (Elogio da Loucura)

Eu, a Sabedoria, tenho a prudência por morada, o senso de oportunidade, eu o descobri. Eu possuo o conselho e o sucesso; são meus entendimento e força [...] Dona Insensatez é agitada, é toda ignorância e não sabe nada. (Provérbios)

Filha de Plutão e gerada pela “mais bonita e alegre ninfa do mundo” - a Juventude - através do amor livre, destituído de subordinações matrimoniais, mas subordinado ao prazer nas Ilhas Afortunadas - pátria “onde a natureza não tem necessidade alguma da arte”, produzindo a terra “tudo quanto possa deleitar a vista e embriagar o olfato” - sobe ao palco a Loucura.[26]

A fim de apresentar seu próprio elogio, diante de uma platéia numerosa, os seres humanos, mais especificamente a sociedade européia contemporânea a Erasmo de Rotterdam – indivíduos ingratos e fingidos, que sendo “estultíssimos”, não manifestam, contudo, o reconhecimento que devem a esta que lhes fala - põe-se a dizer aberta e honestamente, sem parcas e obscuras definições, vãs retóricas ou insincera humildade, sobre a dívida que lhe deve a humanidade enquanto tal.

Para tanto segue acompanhada de sua especializada corte, afinal não fica bem a uma deusa a falta de sequazes. Nesta corte contam-se o amor-próprio, a adulação, o esquecimento, o horror a fadiga, a volúpia, a irreflexão, a delícia e, ainda, outros dois deuses, o prazer da mesa e o sono profundo.

A conclusão a que chega objetivamente é uma só: a felicidade humana, tendo em vista a sua condição desesperadora, somente é possível pelas benevolências por ela concedida. A legitimidade de sua condição divina está assim baseada na influência, necessidade e manifestação de seu poder, tanto entre os deuses quanto entre os seres humanos. Seu domínio por fim é “sobre todas as coisas”, sendo até os monarcas mais absolutos submetidos ao seu império.

O “Elogio da Loucura”, escrito por Erasmo em 1509, é uma obra prima do humanismo renascentista. Trata-se de uma sátira repleta de vigorosas críticas à sociedade de sua época, onde se inclui de modo específico, dentre outros, advogados, monges, filósofos, sofistas, monarcas, fidalgos, teólogos, sacerdotes e pontífices. Com ares de brincadeira, aos poucos vai tomando forma uma expressão clara, repleta de ironia e sarcasmo que aponta para a profunda contradição, nulidade e fantasia com que é marca a condição humana e seus atos em sociedade. Assim pode-se ver nesta obra profundidades filosóficas, mesmo que sob tons irônicos provenientes de certa “loucura”.

Observe-se, como exemplo, a descrição compassiva da existência humana, conforme apresentada por esta divindade:

Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma alta torre [...] todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel.[27]


Ou então sua lucidez questionadora, expressa nas seguintes palavras:


Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível vale de misérias.[28]

Ciente de sua imprescindibilidade e de seu domínio sobre a existência humana, adverte:

Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria.[29]


E sem muitos impedimentos esclarece:


[...] quanto o mundo duraria pouco, se a sabedoria fosse comum entre os mortais [...] mas também nesse caso, sou eu quem providência, mantendo os homens na ignorância, na irreflexão, no esquecimento dos males passados e na esperança de um futuro melhor. Misturando as minhas doçuras com as da volúpia, eu amenizo o rigor do seu destino.[30]


Quanto ao que aqui mais nos interessa, a saber, a relação de “O Elogio da Loucura” com o imaginário religioso e com a postura eclesiástica e clerical medieval, deva-se salientar que esta temática de forma alguma escapa de seu sarcasmo mordaz e significante. Tanto a religiosidade popular, quanto as minuciosas perscrutações escolásticas ou ainda os interesses clericais não declarados são reconhecidos sem hesitações pela Loucura, tão discriminada e mal quista:

Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos roubos como quando saíram da pia batismal. Tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações.[31]
Bem sei que os sacerdotes não são tão cegos que não compreendam deformidades tão vergonhosas; mas é que, em lugar de purgar o campo do Senhor, eles se empenham em semeá-lo e cultivá-lo de ervas daninhas, com toda a diligência, certos como estão de que estas costumam aumentar-lhes as ganhuças.[32]


Reconhece nos teólogos os seus mais fiéis e prediletos seguidores. Ainda assim, com cautela se dirige a estes, visto o poder de tais em perseguir, encarcerar e matar como hereges aqueles que se lhes opõem:

Mas não consiste somente nisso o armazém teológico; há ainda inúmeras outras argúcias, não menos frívolas e sutis do que as supracitadas. Tais são, por exemplo, o instante da geração divina, as noções, as relações, as formalidades, os quid, os ecce, e tantas outras quimeras de natureza semelhante. Duvido que alguém seja capaz de descobri-las, a não ser que tenha uma vista tão penetrante que lhe permita distinguir, através de densas nuvens, objetos inexistentes.[33]


Interesse é observar a sábia constatação da Loucura, sobre tais que se professam cristãos:

Oh! como são numerosos os que, em pleno meio-dia, acendem velas aos pés da Virgem Mãe de Deus! Ma s não se acha quase nenhum que siga os seus exemplos de castidade, de modéstia, de zelo pela causa da salvação. No entanto, a imitação das suas virtudes seria o único culto capaz de assegurar o céu aos devotos.[34]




5. ERASMO E LUTERO: CONSIDERAÇÕES FINAIS A PARTIR DAS CARTAS DE UM HUMANISTA CRISTÃO

Erasmo e Lutero foram dois vultos que deixaram uma influência muito grande na Europa pré moderna. A mente de ambos ultrapassava os limites de seu tempo, mesmo tendo posicionamentos diferentes em relação ao homem e sua relação com Deus e com a própria vida, entretanto, se aproximaram em pontos importantes, os quais não aceitavam os erros, a corrupção e a opressão da igreja oficial.

Para João Quartim de Moraes “ambos estavam mais preocupados com o significado do cristianismo enquanto religião do que com polêmicas teológicas”.[35] Embora, vale afirmar que também lidaram com perspectivas teológicas, principalmente Lutero. Moraes destaca que eles procuraram não se envolver nas sutilezas filosóficas com que a escolástica dos séculos XIII e XIV havia tratado e menciona um conflito estabelecido quando Lutero soube da publicação da obra De libero arbitrio por Erasmo, o qual envia uma carta em 1524 apelando para que Erasmo ficasse neutro entre a Reforma e a cúpula Romana. “Peço-te apenas que não publiques obras contra mim. De meu lado, abster-me-ei de escrever contra ti”. Erasmo não atendeu este pedido.[36] Os conflitos entre si foram vividos ao longo de suas vidas.

Erasmo e Lutero, praticamente se tornaram símbolos do humanismo e da Reforma. Cada um com sua importância, movimentos que tiveram alcances diferentes, conforme afirma Huizinga, o Renascimento atingiu apenas as elites sociais, “foi a roupa de domingo”[37], enquanto que a Reforma alcançou toda massa populacional européia. De qualquer forma não dá para pensar a Europa moderna e até mesmo pós moderna, sem analisar este período de transição, e não dá para analisar este período, sem uma pesquisa séria destes personagens. Embora Lutero seja muito mais pesquisado e discutido, Erasmo que foi tão proeminente, merece um lugar “mais ao sol” na pesquisa historiográfica.




6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAINTON, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.

CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas. 125-1550. II A Reforma Protestante. Edições 70. Lisboa, Portugal. 1975

DESIDERIUS, Erasmus. O Elogio da Loucura. In.: Coleção Os Pensadores – Erasmo e Thomas More. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 2ª ed.

LINS, Ivan. Erasmo, a Renascença e o Humanismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

MORAES, João Quartim. Erasmo e Lutero: Teologia e Reforma do Cristianismo. IFCH/UNICAMP. março/99

OLIN, John C. (org.) Christian Humanism and the Reformation – Desiderius Erasmus Selected Writings. New York : Harper Torchboocks / The Academy Library,1965.

ROPS, Daniel. A Igreja da Renascença e da Reforma (I). Trad. Emérico da Gama. Quadrante. São Paulo-SP, 1996.

www.das.ufsc.br/ander/estudos/soc_hist/13.htm

www.klepsidra.net/klepsidra6/areforma.html

ZWEING, Stefan. Erasmo de Rotterdam. Porto Alegre : Livraria do Globo, 1936.

[1]Artigo apresentado em cumprimento às exigências da disciplina “Religião e Religiosidade na época da Reforma” do curso de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) lecionada pelo Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth.
[2]O texto da coleção “Os Pensadores”, editado pela Abril Cultural, aponta para o fato de que os biógrafos oscilam entre os anos 1465 e 1469 quanto a datação do nascimento de Erasmo. Já a obra “Erasmo, a Renascença e o Humanismo”, de Ivan Lins, data o nascimento de Erasmo no ano de 1466. Tais incertezas justificam-se a partir do fato de Erasmo ter sido filho bastardo, tendo em vista que seu pai era uma clérigo da Igreja Romana.
[3]Outra dúvida biográfica apresenta-se quanto ao nome correto de seu pai. Assim a obra “Erasmo”, escrita por Pierre Mesnard, resume tal incerteza ao apontar para Gérard ou Geert. Ainda, o texto de Ivan Lins, apresenta como pai de Erasmo Gerrit Praet.
[4]Dúvidas surgem também quanto ao nome de batismo correto de Erasmo. Certo é que posteriormente passou a se chamar Desidério Erasmo, entretanto, quanto ao trato anterior conta-se no mínimo Gerrit Gerritzoon, “Geraldo, filho de Geraldo”, e Erasmus Rogerii.
[5]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p.XI.
[6]CHAUNU, Pierre. O tempo das Reformas. 125-1550. II A Reforma Protestante. Edições 70. Lisboa, Portugal. 1975, p. 13
[7]Idem. Ibidem. p.16
[8]ROPS, Daniel. A Igreja da Renascença e da Reforma (I). Trad. Emérico da Gama. Quadrante. São Paulo-SP, 1996.p.175
[9]Idem. ibidem. p.195
[10]Idem. ibidem.p.195
[11]Idem Ibidem. p. 192
[12]Idem.Ibidem. p. 193
[13]Idem, Ibidem. p.193
[14]Chaunu, op.cit.p.15
[15]www.das.ufsc.br/ander/estudos/soc_hist/13.htm
[16]Apud. Chaunu, op.cit.p.21
[17]www.das.ufsc.br/ander/estudos/soc_hist/13.htm
[18]Ibid., p. 14.
[19]Erasmo e a Revolução Humanista, p. 26.
[20]Modificado várias vezes até uma edição definitiva em 1533.
[21]LINS, Ivan. Erasmo, a renascença e o humanismo, p. 205.
[22]Ibid., p. 206.
[23]Ibid., p. 206.
[24]Ibid., p. 206.
[25]Ibid., p. 207.
[26]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p. 7-14.
[27]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p. 47.
[28]Ibid., p. 47.
[29]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p. 38.
[30]Ibid., p. 48.
[31]Ibid., p.67.
[32]Ibid., p. 70.
[33]Coleção os Pensadores – Erasmo e Thomas More. Abril Cultural, p., 96, 97.
[34]Ibid., p., 82.
[35]MORAES, João Quartim. Erasmo e Lutero: Teologia e Reforma do Cristianismo. IFCH/UNICAMP. março/99.p.12
[36]Idem. Ibidem. p. 13
[37]Www.klepsidra.net/klepsidra6/areforma.html