quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O trágico e o belo na condição humana – parte I

Às vezes fico imaginando como seria melhor se a vida fosse menos complicada! Mas quando reflito um pouco mais, pergunto a mim mesmo: “Se a vida fosse menos complicada, seria vida?” Há muitas tentativas de compreender ou até mesmo de explicar a condição humana. Dentre essas tentativas há a forte presença da religião. Em relação ao cristianismo, a perspectiva mais conservadora aponta como causa da ‘tragicidade’, o problema do pecado. Alguns mais ‘místicos’ preferem protagonizar o Diabo como principal motivo do fracasso humano. O fato é que esses olhares acabam reduzindo a condição humana a uma forma muito simplista. O que dizer, por exemplo, para um pai que perde seu filho por uma bala perdida? O que pensar quando famílias são vítimas da violência doméstica? Como encarar o suicídio? Por que pessoas se escravizam cada vez mais nas drogas?

O pior é quando se confronta essa realidade com o tipo de cristianismo compreendido pelas pessoas. Lembro-me do começo de meu ministério, quando ministrava um estudo para alguns jovens. Mencionei que em um determinado país da África, muitos estavam passando fome, inclusive cristãos evangélicos. Mal acabei de falar e uma jovem fez um questionamento dizendo: “Então essas pessoas não são convertidas, pois um crente não passa fome.” O interessante é que essa jovem era uma estudante universitária, com uma vida estável, tinha um carro novo que seu pai havia lhe dado para ela não se estressar em andar a pé ou de ônibus até a faculdade. Exemplos assim, infelizmente, são muito comuns. Para alguns a “bênção” de Deus, para outros a falta de fé! Ainda há aqueles e aquelas que acreditam que algumas tragédias da natureza são conseqüências da idolatria de determinadas religiões. Chegam afirmar que é o cumprimento da “palavra” de Deus.

Sou um apaixonado pela Bíblia, mas tenho pavor de interpretações fundamentalistas, alienadas e desconexas da condição humana. Além da Bíblia, a partir de uma interpretação mais livre e voltada para o humano, vejo o pulsar da vida na literatura. Como não inquietar as ‘entranhas da alma’ ao ler “Memórias do Subsolo”? Como não chorar diante da dor e da beleza em “Os irmãos Karamazov”? Como não pensar na ‘pureza’, ou na coragem de viver em “O Idiota”? (Obras de Dostoievski). Como não sentir a dor da solidão ao ler “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques? O final dessa obra me confronta: “ ...porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.” Como não pensar na vida, no cotidiano de milhões de pessoas que passarão sem uma segunda oportunidade sobre a terra? Garcia Marques me faz lembrar uma música dos Titãs, chamada Marvin. A música aborda o triste fim de um pai de família, que antes de morrer diz ao filho: “Marvin, agora é só você, eu fiz o meu melhor, e o seu destino eu sei de cor... Marvin, agora é pra valer, chorar só vai lhe fazer sofrer...”

Para que eu não seja compreendido como um herege ou um pessimista, o livro do Eclesiastes pode me ajudar: “Vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os console; o poder está do lado dos seus opressores, e não há quem os console.” ( Ec 4:1); “ Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos.”( Ec. 9:11)

Talvez uma pergunta passe na cabeça de muitos. Como fazer para mudar isso? Quais os passos necessários? Eu diria que não há passos, pois o que a vida nos ensina é exatamente o contrário. A vida é avessa a fórmulas lógicas e cartesianas, a ‘receitas’ de auto-ajuda, a qualquer triunfalismo evangélico. Vida é apenas vida! “Para contar os dias, basta um dia ao homem para conhecer toda a felicidade.” (Dostoievski). Para viver bem, é preciso saber viver. Ter vida plena em Jesus não é viver sem problemas ou nunca ter crises, mas é aprender a amar a vida como ela é e perceber na condição humana, com o trágico e o belo, a Imagem de Deus. Somente nessa percepção é que nos tornamos mais humanos. “ ...se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto.” ( Jo 12:24)

Creio que seria um bom começo...


Claudinei Fernandes

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Um Pouco de Leveza

Há alguns dias atrás fui “intimado” pelo médico a emagrecer. O exame que fiz acusou uma alteração no fígado (excesso de gordura), o que me “obriga” a perder por volta de vinte quilos. Ao ouvir o diagnóstico, pensei no ‘peso’ das suas palavras que imediatamente causou-me um ‘peso’ no coração e na consciência. Ao mesmo tempo comecei a pensar como deixamos a vida ‘pesada’, não somente pelo excesso de ‘peso’ do corpo, mas pelo ‘peso’ que lançamos sobre ela (vida). Não pude deixar de refletir o quanto é necessário um pouco de leveza!

Diariamente busco meus filhos na escola. Primeiro pego o Júnior em uma escola de educação infantil e em seguida busco o Abner em outra escola, de ensino fundamental. Ambas são escolas municipais. Os assuntos com eles são diversificados, mas quase sempre se repetem: o gol sofrido na hora do recreio, as brincadeiras, as novas descobertas em sala de aula, uma fofoquinha sobre os amigos, o humor dos professores etc.

É muito interessante observar todas as crianças na saída. Eu não sei se a alegria é a mesma ao entrar e iniciar a aula, mas é bem perceptível e até estampado nos olhinhos infantis a alegria de voltar para casa. Há aquelas crianças, cuja situação social é bem precária, que usam chinelos de dedo e roupas bem ‘batidas’, mas apesar disso, não sorriem menos que as outras. Há também aquelas que são recebidas pelo pai ou pela mãe logo ao sair pelo portão. Nos poucos momentos que observo as crianças na saída da escola, sinto o quanto é bom participar deles. Parece que a vida fica mais leve com as crianças, talvez porque elas ‘têm cheiro de Deus’.

Assim também é na igreja. Como as crianças alegram o ambiente! É claro que às vezes são bem agitadas, mas é lindo vê-las se desenvolvendo. Com criança a gente conversa muita coisa, de dinossauros a oração. Outro dia, brincando de futebol com o Juninho, ele tomava gol de propósito só para comemorar comigo. O pior é que ele fazia questão de perder para comemorar minha vitória. Que coisa fantástica! Quem gosta de perder para comemorar com seu “adversário”? Somente quem prefere a alegria do abraço ao invés do sabor da conquista. Atitudes assim são capazes de ‘tornar leve’ um mundo tão competitivo e de sentimentos religiosos tão triunfalistas. Talvez o que todos precisamos é um pouco de leveza. Que tal aprendermos com as crianças?!

Claudinei Fernandes

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

“Brasil Muçulmano” ou desencanto do cristianismo?

"Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus." (Fp 2:5)

Um artigo publicado no informativo batista, veículo de comunicação via internet em 10/10/2009, traz o seguinte título: “Brasil muçulmano?” Segundo informações deste artigo, o Brasil tem sido recentemente, talvez pelo seu destaque no cenário mundial, palco de encontros e diálogos de líderes muçulmanos, cujo objetivo é discutir e planejar seu avanço na América do Sul.

Não sou um entendido do Islã, mas sei que ele também tem uma perspectiva de conquista, assim como o cristianismo. Em relação a isso, muito se assemelham. Não sei se é necessário haver uma forte preocupação com o avanço do Islamismo em si no Brasil, mas com certeza é preciso haver uma preocupação com a Igreja. Quem sabe começar analisando se ela (igreja) tem sido realmente aquilo que Jesus propôs. A história mostra que todas as vezes que esse ‘espírito de guerra’ entre essas religiões se manteve, só houve perdas. Ao invés de pensar e analisar de forma apologética (defesa da fé), a Igreja deve pensar simplesmente o que significa ser Igreja e qual seu papel no mundo. A Ênfase de Jesus nos evangelhos sempre foi o amor, compaixão e justiça. Não deveria ser esta a ênfase de todo o cristianismo?

Se o cristianismo (católico, ortodoxo ou protestante) não atender a necessidade das pessoas, elas simplesmente se abrirão para novas perspectivas religiosas. Isso não diz respeito apenas ao islamismo, mas a qualquer religião. A cultura evangélica no Brasil, por exemplo, é anti-católica e em geral fechada a qualquer diálogo ecumênico, o que mostra uma forte insensibilidade antropológica. Tem o hábito de demonizar tudo aquilo que é contrário a sua ‘são doutrina’.

A meu ver a liberdade religiosa no Brasil é muito mais benéfica do que perigosa, mesmo dando abertura a outras religiões. Acredito até que propicie a grande oportunidade de mostrar o quanto o evangelho tem a contribuir de forma significativa em todas as esferas da vida. O quanto é possível construir um humano melhor a partir de ações concretas de amor e compaixão, de compreensão do outro, priorizando pessoas e tratando-as com dignidade. Parafraseando Leonardo Boff: “Só pode haver o ‘Pai nosso’ se houver o ‘Pão nosso’”. Se a forma de viver e entender o evangelho se der a partir de Jesus, de sua vida, de sua humanidade e da forma como ele lidava com as pessoas e as ensinava, nenhuma ação externa se tornará uma ameaça.

Infelizmente a cultura ocidental, profundamente influenciada pelo cristianismo, tem gerado muitas desigualdades sociais. Tem sido a grande portadora de um sistema econômico monstruoso que gera riquezas para poucos e conseqüentemente pobreza e miséria para muitos. Afirma ainda que isso é sinônimo de liberdade. Além deste cenário, há a grande participação na destruição do meio ambiente em nome do progresso (ou da ganância). A conseqüência destes acontecimentos causa o que Max Weber chamou de ‘desencanto’. Apesar de estar se referindo ao final do Séc.XIX e começo do Séc.XX, em relação ao desencanto com a religião e, portanto uma aproximação com o secularismo, não é diferente em nossos dias e em nosso país, só que ao invés do secularismo, a aproximação tem sido com outros horizontes religiosos. Tudo isso acaba gerando um terreno fértil para novas religiões, que se transformam em novas alternativas em meio a tantas desilusões.

Não será - assim como nunca foi - ações do tipo ‘guerra santa’ ao estilo Bush, com um fundamentalismo cristão tão estridente quanto ao do próprio Islamismo que impedirá qualquer “ameaça” religiosa. Não se deve pensar em ‘novas cruzadas’ e nem tampouco em ‘repreender o inimigo’, mas em refletir naquilo que realmente queremos ser enquanto Igreja.

Que Deus tenha misericórdia de nós!

Pr. Claudinei Fernandes

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um Grito Hermenêutico: O Grande Desafio Pastoral de Nossos Dias.

...mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. ( Mt 23:23b)
Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo. (Rm 14:17)
Estes dois textos retratam o pensamento teológico da Comunidade de Mateus e de Paulo. Ambos apontam elementos concretos na construção de suas ideias. Mateus descreve o assertivo discurso de Jesus dirigido aos fariseus, no qual apresenta os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. A linguagem teológica dessa comunidade é construída a partir da interpretação da Lei, isto é, da interpretação de Jesus ou da compreensão daquela comunidade sobre Jesus em relação à Lei. “Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir.” (Mt 5:17).
Paulo, na epístola aos Romanos, está lidando com um conflito no qual também envolve a interpretação da Lei. Está ensinando àquela comunidade que o Reino de Deus não consiste em comida (alimentos permitidos ou não permitidos), nem em observar ou não supostos dias sagrados. Diante desse emaranhado de costumes e tradições judaicas, tenta mostrar que não há relação entre essas tradições e o Reino de Deus, pelo contrário, destaca que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo.
Os dois momentos refletem a grande distância que havia entre essas respectivas concepções da Lei em relação aos preceitos mais importantes e entre o Reino de Deus. É sempre mais fácil apelar para o rito e a forma, culto e liturgia, que são muito mais subjetivos e abstratos do que para ações concretas e humanas de serviço. Mateus parece evidenciar de forma externa, ou seja, ações que tenha o outro como alvo. Por isso, justiça, misericórdia e fidelidade. Paulo, entretanto, parece ter uma ênfase muito mais interna, uma transformação para dentro, onde cada pessoa experimenta de forma pessoal justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Essas esferas se dão tanto no público quanto no privado (coletivo e individual).
Nossa forma de pensar Igreja ainda se distancia dessas prerrogativas de Reino de Deus. É possível perceber isso em todos os seguimentos evangélicos, sejam eles: históricos, pentecostais e neopentecostais. Justiça, misericórdia, fidelidade ou justiça, paz e alegria no Espírito Santo foram trocadas por programações eclesiásticas e denominacionais, campanhas, shows, mercado, comércio e mídia. Não dá para comparar esses textos bíblicos com a atual forma de interpretação de Igreja e até mesmo de Reino de Deus.
De um lado há o excessivo apelo à prosperidade e cura pelos neopentecostais. Vale mencionar o nascimento constante de possíveis “impérios” religiosos que concorrem entre si e têm um forte poder de Marketing. O carisma de líderes que conseguem sem o menor pudor hermenêutico convencer e agregar pessoas se fazendo ‘ungidos’ inquestionáveis de Deus. De outro lado há o pragmatismo eclesiástico que reduz essa perspectiva de Reino de Deus em campanhas evangelísticas e declarações públicas (fundamentalistas) de doutrinas, onde uma pessoa simplesmente atende a um apelo e se torna um “crente”. Aprende a orar, ler a Bíblia, ir ao culto dominicalmente, contribuir com missões e é claro, ser dizimista. Não quero com isto comparar um lado com o outro, apenas apontar ênfases, que certas ou erradas, merecem destaque.
Será isso que os textos mencionados estão se referindo? Será que nossa teologia de missões está sendo pensada sobre um viés teológico concreto e humano? Será que nosso discurso realmente é bíblico?
Não tenho a intenção de desmerecer o esforço e a boa intenção de ninguém, apenas convidar para uma reflexão hermenêutica. Não seria o momento de buscarmos uma teologia bíblica mais madura e relevante? Talvez esse seja o grande desafio pastoral de nossos dias.
Pr. Claudinei Fernandes