terça-feira, 25 de março de 2014

Discernir a voz

“ O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e tenham plenamente.” ( Jo 10:10). Sempre que pensamos em oração, associamos apenas ao falar, pedir algo a Deus. Oração não é monólogo, mas é diálogo, ou seja, falamos, mas também ouvimos, percebemos, entendemos o que o Senhor mostra. Orar tem muito a ver com o que enxergamos e ouvimos, com o que nos direciona. Por uma questão de regra básica de interpretação de texto, um versículo não deve ser interpretado isoladamente, pois faz parte de todo um contexto histórico e cultural. Está inserido dentro de uma realidade a qual não podemos ignorar. O contexto do versículo lido começa no capítulo 9, onde aborda relato da cura de um cego de nascença e todas as conseqüências desse ato. Havia muitas crenças por trás da cegueira de nascença. Muitos acreditavam que a cegueira era um castigo de Deus, inclusive alguns discípulos de Jesus acreditavam nisso (9:1,2). Havia também compreensão por parte de alguns que somente o Messias poderia curar um cego de nascença. Jesus cura um cego de nascença, que além de cego era mendigo. Aliás, não teria outra opção a não ser mendigar, não havia nenhuma ajuda do Estado, não havia inclusão social, nem vagas para deficientes no mercado. Essa cura aconteceu no Sábado. Isso provoca um problema sério entre os fariseus. Curar um cego de nascença no Sábado. Com certeza algumas perguntas surgiram, inclusive algumas relatadas no texto. “ Quem o curou?” “Como pode curar no Sábado?” “ Como pode acontecer algo assim sem que passe por nós que zelamos da lei?” “Estamos perdendo o controle da situação?” Em nenhum momento se alegraram com a cura daquele homem! Apenas se preocuparam em esclarecer os fatos e não perderem o controle da situação. Jesus então diz “ Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos.” ( 9:39). Ele estava afirmando que quem acha que enxerga se torna cego diante da vida, da graça, mas quem é cego vai ver a graça, o amor de Deus. Após isso ele continua, usando metáforas do pastoreio no capítulo 10. Os fariseus não gostavam de pastores, mas Jesus usa essa linguagem. Ovelhas, pastor, porta, aprisco, ladrão. Jesus se denomina ‘porta’ e ‘pastor’. O pastor conhece as ovelhas e as ovelhas conhecem sua voz o segue. (10:4,16). Ele afirma: “O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e tenham plenamente.” ( Jo 10:10). Diante disso; quem é o ladrão? De acordo com o texto, o ladrão são os fariseus que se recusavam a aceitar a ação de Deus na vida daquele homem e também se recusavam a tratar as pessoas com dignidade, respeito e amor ( 10:1) ...”quem sobe por outro lugar, que não a porta, é ladrão e assaltante.” Quem não entra pela porta é ladrão. Quem não age de acordo com Jesus, que não cuida das pessoas como ele, mas quer controlá-las, manipulá-las, esse é ladrão. O ladrão não respeita sentimentos, não respeita a dignidade, nem o sofrimento, só pensa em si. O sistema religioso nos dias de Jesus estava corrompido, usava as pessoas, explorava. Jesus não está falando do Diabo, mas de pessoas. Hoje, quem seria o ladrão? Aquele que não ama a família, mas rouba a esperança, mata de tristeza e destrói a alegria dentro de casa. O marido e a mulher que não se respeitam. É o patrão que explora o empregado, o empregado que engana o patrão. O Estado que não cuida dos mais pobres, negligenciando os cuidados básicos. Permite que pessoas morram sem cuidado médico nos corredores dos hospitais públicos, que cobra tantos impostos mas não se importa com as pessoas. Não pune os poderosos que cometem crimes, corruptos e corruptores. Ladrão também é o que usa de violência de todo tipo, é o intolerante com o que é diferente de seu modo de ver. É o que usa o nome de Deus para enganar as pessoas. O ladrão não se importa com a dor dos outros, não se importa em ferir, mesmo em nome de uma “verdade” que tanto defende. Fere com zelo, mas nunca ama com graça. Outra pergunta a ser pensada: O que é ter vida plena ou em abundância? É ser guiado pelo Bom pastor. Uma vida justa, liberta e em paz. É a convicção da aceitação de Deus para uma vida eterna. Uma vida transformada, com novos valores, com entendimento espiritual, marcada pela graça e amor de Deus. Uma vida que se alegra na comunhão, que reconhece o agir e direção de Deus. Uma vida que se sente amada, tratada com respeito, que também aprende com Jesus o valor da vida. Não mendiga vida, mas a vive com abundância, mesmo em meio aos problemas, pois vive numa relação com o autor da vida, compreende as limitações e dores dos outros, não acusa, mas ama a justiça. Vivemos um tempo de muitas vozes: - A pressão pelo sucesso a todo custo. - O prazer a todo custo ( hedonismo). - O poder a todo custo. ( violência, engano). Gente de oração aprende a ouvir a voz do Bom pastor e segui-lo. Não fica pensando só em si e em seus problemas. Tem discernimento das vozes, sabe reconhecer o ladrão e não se amoldar a ele. O difícil na oração não é falar, mas ouvir e se direcionar pela voz do que disse: “Eu vim para que tenham vida e a tenham plenamente.” Que Deus nos ajude!

2 comentários:

  1. Excelente texto, nos ajuda a enxergar o quanto a religiosidade desumaniza enquanto a espiritualidade dos evangelhos nos humaniza. Ouvir a voz do Bom Pastor é indispensável! Um grande abraço!

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  2. Obrigado pelo comentário, querido Jeriel. Abração.

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