segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

“Tu és o Deus que me vê”

Hagar era estrangeira (egípcia) e escrava de Sarai (esposa de Abrão). Uma ‘tríade’ bastante excludente - mulher, escrava e estrangeira – num sistema patriarcal. Acaba envolvida em uma situação de frustração de sua senhora com a cumplicidade de seu senhor. Sarai não podia ter filhos e propõe a Abrão que tenha um filho com Hagar. Esse, por sua vez, aprova a ideia, afinal, deitar-se com Hagar, jovem e bonita, não seria para ele uma má ideia! Ou talvez ele pensasse que isso seria uma forma de apaziguar o coração de sua mulher. Vale lembrar que ele havia recebido a promessa do Senhor de que seria pai de uma grande descendência. Hagar acaba ficando grávida de Abrão, e a partir de então sua vida se torna muito difícil! Passa a ter sérios conflitos com sua senhora, talvez por ciúmes, afinal, agora a jovem seria mãe e ela não. O texto bíblico diz que “Sarai tanto maltratou Hagar que esta acabou fugindo” ( Gn 16:6). Em meio à frustração de Sarai e a omissão de Abrão, Hagar é que sofre as consequências. Afinal, a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco! Ela, em desespero, foge para o deserto. O que uma mulher grávida, humilhada, oprimida e sozinha poderia esperar no deserto? Talvez a morte, ou quem sabe a possibilidade de encontrar ajuda. Mas ela tem uma experiência profunda com Deus. Aquilo que em religião é chamado de epifania (manifestação de Deus). Recebe o consolo, o encorajamento. Uma escrava agora recebe o conforto divino. Hagar é primeira mulher na Bíblia a viver essa experiência. “Este foi o nome que ela deu ao Senhor que lhe havia falado: “Tu és o Deus que me vê.” ( Gn 16:13). Ela volta para a casa de sua senhora. O tempo passa, seu filho ( Ismael) nasce. Mas a história volta a repetir-se. O pesadelo volta! Dessa vez ela é expulsa de casa com seu filho. Ela e o menino no deserto. “Quando acabou a água da vasilha, ela deixou o menino debaixo de um arbusto e foi sentar-se perto dali, à distância de um tiro de flecha, porque pensou: “não posso ver o menino morrer.” Sentada ali perto, começou a chorar.’ (Gn 21:15,16). Fico imaginando a cena: uma mãe se afasta do filho para não vê-lo morrer de sede no calor escaldante do deserto. Mais uma vez o Senhor se revela a ela e a socorre, juntamente com seu filho. Mais uma vez o “Deus que me vê”, visita Hagar. O Deus que vê o que está no mais profundo do ser. Que vê os medos, dúvidas, incertezas, solidão, que vê a humilhação enfrentada, que vê a dor, que vê a vontade de viver com dignidade. O “Deus que me vê” e que está ao lado. Que compreende o que ninguém compreende. Hagar é uma das pessoas da Bíblia menos compreendidas, afinal, ela foi apenas uma “aventura” na vida de um casal, apenas uma escrava estrangeira. É vítima de pessoas que seguem a Deus, mas que não conseguem lidar com as próprias frustrações, ansiedade e insensibilidade, apesar de bem intencionados. Abrão, homem que Deus chama para uma missão especial e Sarai, sua esposa. Entre opressores e vítima, o que se vê é a dura tentativa de ajustar as coisas depois que elas estão feitas. Depois que as decisões são tomadas, principalmente quando se quer assumir o controle, mas sem a direção de Deus. O que se tem é sofrimento, feridas e muito choro. Felizmente, Deus é maior que isso tudo. Deus é maior que a cultura patriarcal, se revela a uma mulher, escrava e estrangeira. Deus é maior que as incoerências humanas, que os erros de quem não poderia errar. Felizmente, Deus é o Deus que vê! Que caminha no deserto, em meio às lágrimas de uma mãe, a fragilidade de uma criança, e a esperança de um recomeço!

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